9 de dezembro de 2011

In memoriam...

Mariana Franhan ★ 15/03/1990 - 09/12/2011 †


Já bem perto do acaso, 
eu te bendigo, ó Vida,
Porque nunca me deste 
esperança mentida,
Nem trabalhos injustos, 
nem pena imerecida.

Porque vejo, 
ao final de tão rude jornada,
Que a minha sorte 
foi por mim mesmo traçada;

Que, se extraí os doces méis 
ou o fel das coisas,
Foi porque as adocei 
ou as fiz amargosas;
Quando plantei roseiras, 
colhi sempre rosas. 

Decerto, aos meus ardores, 
vai suceder o inverno:
Mas tu não me disseste 
que maio seria eterno! 

Longas achei, confesso, 
minhas noites de penas;
Mas não me prometeste 
noites boas, apenas
E em troca tive algumas 
santamente serenas… 

Amei e fui amado, 
acariciou-me o Sol. 
Para que mais?
Vida, nada me deves. 
Vida, estamos em paz!

Em paz, Amado Nervo



Todas as luzes estarão no seu caminho até Perséfone!
Que a nossa despedida seja breve...



20 de novembro de 2011

Ambrosia.

"Zona Abissal", foto de Ligia Goi.

Escrevo para ser lido
muito além do contexto
dizer aquilo que não digo
usando a pena como pretexto

Te mostrar o que não vejo
em mim mesmo, na realidade
esconder o verdadeiro desejo
de queimar a insanidade.

Destruindo as quimeras
tomando a ambrosia
perdurando por eras
agonizante letargia.

Pelo tempo somos lidos
quando deixamos o útero materno, 
escrevemos para não sermos esquecidos, 
eu escrevo para ser eterno.




16 de novembro de 2011

365 dias...



Parágrafo 1.

Adiantado como sempre, transitava pelas estações mas vivia eternamente em horário de verão. Adiantado não uma hora, mas um ano, ou mais. O seu horário de verão nada tinha em comum com o nome da estação, era o verbo "ver" na terceira pessoa do plural no futuro do presente do indicativo. Verão. Na certidão de nascimento tinha vinte e quatro anos, na vida vinte e cinco ou mais. Sempre somara trezentos e sessenta e cinco dias à sua idade, uma ânsia de se adiantar, de chegar logo ao fim, de se poupar mais um ano.





26 de setembro de 2011

Coala na sala.




Não houve nenhum medo no grito. Ele tinha apenas um som de choque, uma nota de embriaguez, uma sugestão de pura idiotia da minha parte. Foi um som estranho até para mim mesmo que no momento não gozava de todos os sentidos. Havia terminado uma discussão seis horas antes daquilo acontecer, e com ela havia terminado um relacionamento de um ano agonizante, dividindo um quarto com uma janela irritantemente emperrada e uma cama sufocantemente pequena para nós dois, foi inevitável. Fim era a palavra que tanto buscávamos, e enfim encontramos.
Ricardo levou embora suas poucas coisas do apartamento horas antes, e decidi que não ficaria lá olhando-o retirar-se aos poucos de minha vida, se num futuro próximo ou distante, que seja, eu me arrependesse daquilo sozinho, iria me culpar por não tê-lo agarrado na porta e implorado que ficasse, então me poupei deste futuro arrependimento e quis gozar ao máximo o momento em que de fato, não queria que ele ficasse, saí pra beber.
E bebi o que não havia bebido em anos, me descobrindo desacostumado ao álcool.
Horas depois estava sendo carregado por amigos até a porta do edifício, com dificuldade e um andar trôpego cheguei ao elevador e me encostei, ele fez seu trabalho e me deixou no quinto andar, quase em frente a porta que estava trancada, me colocando numa luta feroz entre minha embriaguez e a minúscula fechadura, tendo como pivô a chave se escondendo em um dos doze bolsos da minha mochila, entrei, e então, o inevitável grito.
Ele estava sentado no sofá, segurando algo que eu ainda não havia identificado, escutou meu grito mas não se assustou, continuou segurando o que agora eu sabia ser uma lata de Pringles, avistei batatas espalhadas pelo chão e farelos sobre todo o sofá vermelho que Ricardo havia escolhido meses antes, e que eu ainda pagaria por meses adiante. Ele não era Ricardo, era um bicho.
Me aproximei devagar buscando resgatar a sobriedade lá do fundo da minha alma, não temia um ataque vindo daquilo pois me parecia estranhamente fofo e desajeitado para atacar qualquer coisa, estava calmo e manso, e sequer me acompanhava com o olhar, olhava para a lata de Pringles em sua mão (pata?), me aproximei, estava muito ébrio para permanecer em pé, então sentei em frente a ele no outro sofá também vermelho.
Junto com a pouca sobriedade recém adquirida me veio a notícia de que sabia o que era aquele bicho, não lembro onde havia absorvido tal informação, que se não fossem os acontecimentos daquela estranha madrugada, julgaria ser completamente inútil. Ele era peludo, gordo e meio pequeno, era um coala, e estava sentado no meu sofá.
Sabia que não se tratava de um bicho nacional, além de sua cara estranha não estar estampada em nenhuma cédula, eu sabia que era australiano, e então me perguntava o que estaria fazendo aquele bicho australiano no meu sofá. Ele sem dúvida não parecia muito preocupado com sua estadia no meu apartamento, estava quase confortável, se posso assim dizer, sentado como se fosse gente e comendo pringles lá. Olhou para o aparelho de som desligado, e ficou parado , então olhou para mim, eu olhei pra ele, um olhar assustado, nós humanos temos o costume de temer as coisas adoráveis, e aquilo era uma das coisas mais adoráveis que já havia visto.
Esfreguei com as costas das mãos os meus olhos e mentalmente tentei recontar as bebidas que havia tomado, nada que em outros tempos não houvesse ingerido antes, será que havia sido drogado? Já havia experimentado algumas drogas também, que me deixavam elétrico, faminto ou até mais lento, mas jamais havia tido alucinações antes, ainda mais uma tão real quanto aquele bichinho comendo meu pringles  e sentado no meu sofá. Percebendo minha total falta de tato para lidar com aquela situação, ele enfiou seu braço dentro da lata de pringles e vasculhou o tubo, até que seu cotovelo desapareceu la dentro, ou algo parecido com um cotovelo, não sei se os bracinhos destas criaturas possuem as mesmas articulações que as nossas, ele retirou uma rodela de batata intacta, e a apontou em minha direção, se fosse humano poderia dizer que estava me oferecendo a tal batata, mas não era humano, e mesmo assim, estava de fato me oferecendo aquela batata que eu mesmo havia comprado semanas antes, para uma possível fome, ou uma ocasião de ociosidade onde coisas como panelas, fogões e louça acumulada sobre a pia fossem o último caminho que me levaria até a minha comida. Bastava abrir a lata com seu barulho de champanhe e "flop" o jantar estava servido. Eu havia comprado aquela batata, e devido a embriaguez me senti momentaneamente ofendido com o bicho me oferecendo o que era meu por direito. Então num gesto brusco, quase animalesco, tomei a batata da mão dele e enfiei-a inteira na boca de uma vez. Mastiguei fazendo barulho, um som que me irritava mas sentia que demarcaria meu território, mas o bichinho, tímido que era, nem deu atenção, voltou a comer a sua própria batata em silêncio olhando o nada a sua volta.




Decidi que minha vida não podia ficar mais estranha daquele momento em diante, em que um coala australiano apareceu comendo pringles sentado no meu sofá. Então fiquei estranhamente mais relaxado, e percebi que o bicho fitava curioso o aparelho de som, colocado em seu espaço destinado no raque da sala, dei um sorriso involuntário e decidi ligá-lo só pra ver a reação do ser fofo. Me senti um cientista no meio de um experimento, abaixei cautelosamente o som para não assustá-lo mais que o necessário, afinal não sabia nada sobre essas criaturas, nem sabia que dava isso no Brasil, vai que ele ficasse violento ou tivesse uma doença contagiosa, me preveni ficando a uma distância segura e liguei o som. O bichinho parou de comer e ficou atento olhando as lusinhas do aparelho descerem e subirem conforme os graves da música, fui mudando os cds que ali estavam colocados, inutilmente cabiam doze na disqueteira, uma gulodice comum na época que precedeu o pendrive e a tecnologia USB, cheguei no cd de Elis Regina, ela cantava alegre uma de suas músicas que na hora não pude identificar, e o bichinho ao que me parece, ficou mais relaxado, e voltou a comer sua batata. O coala na minha sala tinha um gosto musical mais refinado que o próprio Ricardo, e isso me fez rir novamente.
Enquanto ele estava entretido com a batata e a música, decidi pesquisar sobre a criatura, liguei o notebook que estava em stand by na mesa da sala, digitei "coala" no google, e imediatamente a wikipédia me avisou que "ao perder a sua casa e alimento, o coala se muda e pode chegar a povoamentos ou cidades, onde via de regra morre por atropelamento ou é caçado por cães, a caça ao coala é um costume na Austrália e sua carne é muito apreciada pelos povos aborígenes.".Fiquei estranhamente triste ao ler o destino daquele bichinho que não fazia nada a não ser ocupar seu tempo sendo fofo, apesar de que toda a sua fofura de fato dava a impressão que sua carne devia ser saborosa, ainda mais a deste em particular que já estava recheado de pringles, que mundo cruel, pensei.




O que eu deveria fazer? Estava lutando para manter o mínimo de racionalidade que a situação e a bebida me permitiam, mas quando um coala aparece na nossa sala (e acho que essa sensação bem específica de ter um coala na sua sala, é uma das poucas coisas que posso afirmar que só eu senti), fica mais difícil manter-se racional. Tinha medo de chamar a polícia ou os bombeiros, afinal se o C.S.I. achasse o pringles no coala, eu poderia ser indiciado por contrabando de animais exóticos, silvestres, gordos ou qualquer coisa do tipo. Já que sóbrio não ficaria mesmo, fui até a geladeira contornando o sofá do coala, ou melhor, o meu sofá, onde de lugar nenhum surgiu um coala e se sentou naquela noite. Abri a porta superior do freezer e enfiei minha cabeça la dentro numa tentativa literal de refrescar as idéias e pensar mais claramente. Então preenchi o copo com vodka, uma, duas, três, quatro vezes. Num momento absurdo de epifânia na cozinha, quase chorei ao pensar que o coala poderia estar com sede, todos me dizem que fico mais sensível e até sociável quando bebo, mas jamais havia me importado com a hidratação corporal de criatura alguma, nem mesmo Ricardo, e o pobre coala ainda havia devorado quase sozinho uma lata de Pringles apimentada, o bichinho poderia estar morrendo naquele momento e eu lá me embriagando, isto é o que eu poderia chamar de "fugir da realidade", a minha realidade no momento, é que tinha um coala na minha sala sedento, e eu ali bebendo, pensando no preço exorbitante que haviam me cobrado por aquela garrafa de vodka. Abri o armário e procurei algo para servir a água fresca ao coala, uma tigela? Um copo? Como daria água aquilo? Peguei um recipiente plástico e o enchi de água. Voltei a sala.
O Coala estava parado sentado em seu lugar no sofá e ouvindo Elis, me aproximei cautelosamente dele, e empurrei a tigela de água em sua direção, ele se apoiou desajeitadamente nas patas da frente e começou a cheirar, instintivamente colocou a boca na água e sorveu o liquido, mas de uma maneira diferente de um cachorro ou gato, não sei dizer como, mas foi bem diferente e mais engraçado de se ver.
Notei que em cima do aparelho de som, jazia um pendrive que não era meu, e certamente não era do coala, era do Ricardo com certeza, aí então a ficha caiu, ele havia estado no meu apartamento antes do coala... Ele era o responsável por aquilo tudo, com certeza instalou alguma câmera em algum lugar do ambiente e me mandaria via msn o link do vídeo já postado no youtube intitulado: O Bêbado e o coala.
Não permitiria isso, nem comigo, nem com o pobre animal inocente, peguei o celular do bolso e disquei seu numero quase de modo mecânico, ele atendeu, sua voz demonstrava claramente que tinha acabado de acordar:
- Alô?
- Ricardo, o que é este animal no meu sofá?
- Hã?
- Ricardo, eu te fiz uma pergunta, é bom ter uma resposta... O que este animal está fazendo comendo pringles no meu sofá?
- Já cansei dessa merda Felipe, se você ficou bêbado, desceu a Augusta, pegou um gay qualquer e levou pro apartamento, eu não sou obrigado a saber, quando você vai começar a agir como um adulto?
- Não seja cínico Ricardo, você levou suas coisas do meu apartamento hoje, mas obviamente esqueceu uma coisa extremamente importante aqui, só não sei se foi propositalmente.
- O quê? O meu pen-drive?
- Não Ricardo, um COALA!
- Olha aqui Felipe, cansei desse seu sarcasmo imbecil, desse teu mau-humor crônico, é apenas a porra de um pen-drive, amanhã eu mando alguém pegar, fica tranqüilo.
- O Pen-drive ou o coala?
- O que?
- Ricardo, este animal já até bebeu água naquela que um dia foi nossa casa, você não entende isso? Ele está olhando pra mim enquanto falo com você agora, me explica isso.
- Felipe, você é fraco pra bebida, não percebe o papel de palhaço que está fazendo? Ligando a essas horas pro seu ex, enquanto o menino que você levou pro nosso ex lar fica aí te olhando, e comendo pringles, e bebendo água, e sei lá mais o que ele esta fazendo, não me interessa! Eu já estou saindo com outra pessoa também!
- Você está saindo com o veterinário do Zoológico Municipal?
- O que você está insinuando? Que eu também sou um animal? Esta na moda chamar os outros de animal como está fazendo?
- Mas realmente apareceu um animal no nosso apartamento Ricardo, não estou brincando, aquele animal famoso da floresta austra...
- O da nota de vinte? Pois Chame o IBAMA, dê banana a ele...
- Vou dar uma banana você vai ver aon...
- Ah, cansei...
Desligou na minha cara.
Coloquei o aparelho na base, e me sentei novamente no sofá em frente ao coala. Ele me olhava com reprovação, mas não era um mérito dele, todos me olhavam com reprovação desde sempre, acendi um cigarro e traguei profundamente. Ele novamente observava o nada ao seu redor, meu deus, eu estava ficando louco. Apaguei o cigarro e me deitei no sofá, abaixei o som do aparelho e o coala pareceu não se importar, ele se virou de costas para mim e apoiou a cabeça no encosto do sofá, começou a respirar mais lento, e adormeceu fazendo um barulho estranho.  
O esgotamento físico e mental de um dia de trabalho, separação, bebedeira e animais exóticos se abateu de uma vez sobre mim, e não lembro como, mas adormeci irresponsavelmente, largado mesmo.
Acordei com o sol invadindo a sala, junto com a dor de cabeça invadindo meu crânio, e minha colega de trabalho invadindo o meu apartamento e recolhendo os pedaços de pringles do chão e do sofá, eu ainda tinha sinais de álcool no meu sangue e não conseguia compreender a realidade direito:
- Janaína?
- É, sou eu Felipe, você tá bem? Vim te dar carona pro trabalho, eu cheguei aqui encontrei o Ricardo descendo, ele me deu a chave dele e disse que você estava de ressaca da noitada de ontem, daí eu entrei.
- Ué cadê ele? - disse eu me levantando e desajeitadamente revistando cada cômodo da casa.
- É Felipe, ele foi embora, eu sei que deve ser estranho, mas você vai ficar bem meu amigo.
- Mas eu não entendo Janaína, como ele apareceu aqui? Eu dividi minha pringles com ele, eu dei água pra ele beber numa tigela!
- Numa tigela? Não me admira que você esta solteiro, apesar que dividir a pringles é uma idéia bem romântica, acho válido...
- Hã? Mas você chegou a ver ele indo embora? Por onde ele foi? Pela árvore encostada na janela? Aquele animal ingrato!
- Nossa Felipe, coitado, ele foi de elevador mesmo, foi onde encontrei ele, ele...
- Mas como!? Como ele conseguiu...
- Não tem segredo né Felipe, você aperta um botão, a porta abre, aperta outro a porta fecha, agora vai se arrumar, que a Santos ja está um inferno, a gente vai se atrasar horrores.
- Não entendo mesmo Janaína, o Ricardo levou ele embora?
- Ele quem? O Pen-drive?
- Não, o COALA!
- Haha, Felipe seu sarcástico, vai se arrumar, vai...
Naquela manhã tomei um banho demorado, e passei dois dias ainda meio distraído, pensativo, pior do que ver um fantasma, uma assombração, é ver um coala comendo pringles. Como Jung viria isso? O coala seria o arquétipo do quê? Pensei em procurar ajuda profissional, mas sabia que não estava louco, duas vezes eu fiz tudo de novo, bebi as mesmas bebidas no mesmo bar, voltei do mesmo jeito, e abri a porta, esperando que a repetição daquele ritual trouxesse o coala de volta, queria revê-lo por duas razões: a primeira é que preciso provar a mim mesmo que não estou ainda tão louco, e a segunda é porque me apeguei ao bichinho, tínhamos gostos parecidos, Pringles, Elis,etc... Eu sei o que vai acontecer, um dia eu vou contar essa história como "O dia em que bebi tanto que vi um coala na minha sala!", mas por enquanto está tudo bem... Acho que preciso de um lexotan.






p.s. inspirado em meu amigo Felipe. 




21 de setembro de 2011

O moço de dentro do quadro.

Gustave Courbet 'Self-Portrait, The Despairing Man' 1843-1845



Existe na Lua branca algo de encantado
Aos jovens que lêem essa história, cuidado: 
O ouro e os diamantes apenas têm seu valor,
Para os assuntos que não se tratam de amor.

Aconteceu com um jovem senhor abastado, 
 Ornado de puro bronze, prata e ouro,
E possuindo o rapaz tamanho tesouro, 
Podia desposar qualquer jovem do povoado.

Foi ter imediatamente com a que era mais bela
Mas temeu quando percebeu que a donzela, 
Além de bela também era astuta e inteligente, 
Uma linda fada com o coração de serpente.

Decidiu procurar o pai de uma que fosse bondosa, 
Uma donzela ainda jovem, casta, tímida e formosa
Com um coração leve, sem nenhuma ambição
Candidata perfeita para realizar tal transação.

Acertou com o velho que ela seria a prometida, 
E sendo ele pobre e sem posses não teve saída,
A não ser dar embora a sua única filha amada, 
Nos braços do estranho que cruzou a sua entrada.

Receberá muito ouro por isso meu caro senhor
Que destino melhor há para a filha de um pastor?
Disse-lhe o belo jovem que já estava saindo,
A pensar em seu bom casamento sorrindo...

A bela donzela, porém, já estava apaixonada
E é a partir de agora que a trama fica emaranhada, 
Pois o jovem que lhe despertara tanto sentimento
Era só um moço pintado num quadro do convento.

O artista que o pintou nunca foi revelado
Há muito sua assinatura havia se apagado,
E o modelo da obra havia morrido há tanto tempo
Que lhe restava apenas uma imagem no convento.

E mesmo assim, sem saber por que, ela o amava,
Dia e noite, perdida em si, o quadro admirava, 
E quanto mais os homens diziam-lhe que era bela, 
Mais queria transformar suas cores em aquarela,

E para dentro do quadro ser transportada, 
Ao menos para tocá-lo por um só momento
E assim junto a ele congelar seu amor no tempo,
E no convento ser para sempre emparedada.

Quando soube da boa nova contada pelo pastor, 
A pobre jovem se desesperou em dores, 
Pois estava morto o seu sonho impossível de amor,
De viver ao lado do amado transformada em cores.

O desespero a levou até o topo da colina
Onde vivia uma senhorita traiçoeira
De medo regelou-se todo o corpo da menina
Ao deparar-se com a beleza da feiticeira.

Esta era a primeira moça que o senhor visitara, 
E com o coração inflamado de um ciúmes mortal,
Decidiu que enganaria a pobre jovem aflita,
Para que ela sofresse ainda mais até o instante final. 

Porem sua melancolia era tão verdadeira,
Que nem mesmo a mais poderosa feiticeira
Poderia odiar tamanha criatura inocente, 
E comovida, a bruxa ofereceu-lhe um presente:

"Tenho aqui um feitiço forte e adequado, 
Um veneno da lua, que no eclipse foi destilado, 
Vá durante a noite até o convento disfarçada, 
Com o elixir a tela deve ser toda encharcada, 

E do rapaz pintado se dissolverão as cores, 
E com isso desaparecerá todas as suas dores, 
E quando a tela jazer vazia, branca e acabada, 
Por ele não há de sentir mais nada...

E por mais que agora desprezes teu prometido, 
Ficarás com o coração livre para amar teu marido.
E a deusa da felicidade estará então convidada
A cuidar da tua futura vida de casada."

E a jovem apesar de triste, sentiu-se aliviada,
Sabia que seu amor nunca a levaria a nada, 
Seria mais fácil acabar com seu tormento
E aceitar de bom grado seu rico casamento.

Então durante a noite foi disfarçada, 
E no convento entrou na última badalada
Sem fazer um único barulho, como uma ladra, 
Trazendo em suas mãos a morte do amor engarrafada.

Mas nem tudo saiu como havia planejado, 
Assim que se viu diante do olhar do condenado, 
Um moço tão belo, tão alheio, tão desejado.
Apenas beijou os lábios de seu bem amado, 

Soube que o veneno não poderia derramar
Era muito belo para que o vazio o pudesse apagar, 
E estando ela sem nenhuma saída adequada, 
Tomou todo o veneno em uma só tragada.

Caiu no chão, vendo a luz da lua sobre a tela
Era a última visão que queria ter do mundo, 
E a morte lhe parecia cada vez mais bela
Conforme adormecia em um sono profundo...

O moço do quadro, que estava emparedado
Por tamanho amor acabou sendo despertado, 
No último suspiro da moça por quem era amado, 
E amando-a também, viu-se desesperado...

Sem poder mexer-se, apenas pelo luar observado, 
Para a esfera branca no céu começou a soluçar...
E mesmo sem nenhuma palavra conseguir pronunciar, 
O clamor de seu coração pela lua foi escutado:

"Esta jovem morreu por tanto me amar, 
E eu por ela morreria mil vezes sem pensar, 
Não tenho corpo, nem mãos para lhe tocar
Ou mesmo boca para o veneno mortal lhe sugar...

A dor que eu sinto agora, não existe igual, 
Amar tanto e não poder agir como o devido, 
Não fiz nada nesta vida para merecer tanto mal, 
Preferia mais que o veneno tivesse me diluído.

Tanto amor me foi oferecido por esta donzela, 
Pudera eu retribuir como um cavalheiro o amor dela, 
Viver com meu coração de tinta tão pesado eu não agüento, 
Coloque-me logo para fora, ou a ela para dentro."

E Diana que passeava nos céus, estava calada, 
Viu e ouviu tudo o que se passou emocionada, 
E sendo ela uma Deusa resolveu então interceder
E com sua infinita magia, o seu desejo atender.

Na madrugada silenciosa, ninguém ouvia nada, 
Enquanto isso, Diana já trabalhava apressada.
E tendo a donzela atravessado o Aqueronte, 
Nos braços do moço, amanheceu pintada. 

Essa história, triste, pode até parecer,
Mas com ela há algo a se aprender, 
Não há pranto de um coração partido
Que por um deus bondoso não seja ouvido.

E não se dissolvem as cores do amor
Pintadas pelas mãos de um talentoso pintor
Em um coração antes vazio como tela
Que assim foi preenchido por tinta de aquarela

Fim.


Gustave Courbet - Lovers in the Country Side 1847 - 1848



8 de setembro de 2011

O Jardim Secreto

"O Jardim Secreto" - 1993


Ontem ao assistir pela milésima vez o delicado filme de 1993 da diretora polonesa Agnieszka Holland, “O Jardim Secreto”, me deparei com um diálogo extremamente sensível que me passou por muitas vezes despercebido, o diálogo acontece entre Mary Lennox (Kate Maberly) e seu primo Colin Craven (Heydon Prowse), reproduzirei o diálogo como é apresentado no filme:




“- Quando eu morava na Índia, minhas aias costumavam me contar histórias para dormir, você me lembra uma dessas histórias...
- É mesmo? Qual?
- É a história de um Deus, que foi criado afastado de todos, escondido, ninguém podia vê-lo. 
- Por quê?
- Porque quando ele nasceu, seu tio invejoso viu que ele um dia dominaria todo o céu, e desde então tentou matá-lo de qualquer jeito.
- E como ele escapou?
- Ele foi criado por vacas, e vivia entre os homens e mulheres. (risos)
- Mas ele era igual todo mundo?
- Sim, a não ser quando ele abria a boca, se você olhasse dentro da garganta dele, podia ver o universo inteiro lá dentro.
- Mas isso é impossível, para se ver o universo inteiro dentro da garganta de alguém, esse alguém tinha que ser maior que todo o universo, e você acabou de me dizer que ele era igual todo mundo por fora.
- Exatamente, por dentro que ele era maior...”

E para concluir este post, deixo vocês ao som de Linda Ronstadt que fez a trilha sonora do filme e interpreta a música tema, “Winter Light”.



p.s. se olharmos da maneira correta, veremos que o mundo inteiro é um jardim. 


30 de agosto de 2011

Malefício.


"O maior poder dos feiticeiros
 é passar seus problemas
 para outras pessoas..."

Provérbio Indiano

“La Lune est diabolique“, Jacinto me disse isso com seu francês ensaiado e pobre em sotaque enquanto acendia um incenso e o queimava na varanda, disse isso com aquele sorriso redondo e grave de pessoa segura que sabe o que esta fazendo.
Estávamos nus, na varanda de seu pequeno apartamento num conjunto habitacional miserável, mas com um charme peculiar de onde colhíamos a vista de lugar nenhum.
Toquei seus ombros e desfrutei aquele momento enquanto ele olhava admirado algo que julgava estar diferente na mesma lua de todas as noites, não lhe dei atenção e continuei a fumar.
Havia nele tanta coisa que não me interessava, como a sua tatuagem no braço com um símbolo que ele próprio desconhecia mas sempre que alguém lhe perguntava sobre, dizia sorrindo que era para sua proteção. Na verdade sempre odiei esse tipo de gente iludida que acredita em coisas que não se pode ver ou tocar, mas Jacinto era diferente, era o tipo de pessoa suave e encantadora, que se nota mesmo sem querer, que atrai para si tudo o que está ao seu redor como se fosse o ponto de referência de todo o lugar, como se o universo existisse apenas sob seus pés e acima de sua cabeça.
Eu o adorava e naquele momento onde já sabia que teria que matá-lo, me penitenciava sozinho. Eu consegui uma boa quantia de dinheiro quando permiti que um velho estrangeiro usasse meu corpo para suas sujeiras, golpe de sorte eu sei, e Jacinto sabia, nunca me disse nada mas sabia. Nunca me perguntou, nunca questionou minha vida noturna. De qualquer forma, sabia o quanto ele me amava, sabia que iria atrás de mim até no inferno se precisasse, então para que eu fosse completamente livre agora que minha vida finalmente começava a andar, ele precisava morrer.
Ninguém de fato daria falta dele, um homem sem família, pobre e sozinho que ocupava seu tempo trabalhando de garçom, conquistando o pouco que lhe era extremamente necessário, sem ambições e se divertindo lendo coisas sobre o anormal, dizia que uma tia lhe contava histórias das bruxas de verdade que escaparam da inquisição vindo nos navios portugueses para o Brasil, vinha de uma família problemática, quase todos os seus parentes eram fanáticos religiosos de alguma seita e ele perdera contato com eles há anos quando se mudou para a capital.
Com uma vida tão exótica, Jacinto merecia uma morte de cinema, passional, cuidadosamente escolhida. Foi assim que reservei a corda que usaria naquela noite e a ocultei previamente embaixo do meu travesseiro.
De volta ao leito, nos encostamos como sempre fazemos quando eu durmo com ele, passei uma perna no meio de suas coxas, e pedi que se deitasse de costas para mim sobre meu braço esquerdo, ele obedeceu naturalmente. Esperei sentir seu corpo adormecer, então puxando a corda com a mão direita que estava livre, enrolei-a nos punhos, um de cada vez, deixando entre eles um hiato suficientemente longo para o tamanho de seu pescoço e então, num puxão, o lacei de uma vez e o puxei de costas contra meu peito, ele ainda estava entorpecido do sono quando percebeu o que estava acontecendo, se debatia, mas de costas não podia fazer muita coisa, eu havia escolhido a posição exata, pensei. Ele me agarrava, como quem se agarra a um tenro fio de vida, e então, o peso. Senti seu corpo endurecido, sem vida, um arrepio, ele estava morto e eu o havia matado pelas costas, covardemente. Desfiz o laço e ele caiu na cama, olhos arregalados fixados no nada. O quarto estava escuro e o luar que vinha da janela descortinada, deixava tudo pálido, como num filme antigo, preto e branco, seco, sem sangue.
Tomei um banho e arrumei minhas coisas, limpei cada vestígio meu daquele lugar morto, cobri seu corpo com um lençol e fui à varanda uma última vez fumar um ultimo cigarro, iria parar com aquilo, não queria morrer, não podia morrer agora. O ar estava gelado e o luar realmente parecia diferente. Senti uma leve tontura, talvez devido ao choque dos acontecimentos. O frio aumentou e eu entrei no apartamento, minha visão ficou estranha, escurecida, turva, os sons da cidade agora pareciam vozes na minha cabeça, me chamavam de assassino. me apoiei na cômoda porque minhas pernas falhavam, olhei no espelho tentando resgatar qualquer vestígio de força, me agarrava à lucidez mas meus olhos se fechavam contra minha vontade, quando olhei novamente no espelho vi que não havia mais corpo sobre a cama, só o lençol, liso, sem conteúdo, sem o recheio.
Então caí.
Os sons da cidade agora realmente eram vozes, não as entendia mas gritavam com ódio, meus olhos fecharam ou foram fechados, não sei por quanto tempo.
A primeira coisa que senti foi um odor estranho, não conseguia distinguir o que era, se o olfato é o sentido da memória nunca havia entrado em contato com aquele odor antes, aos poucos consegui abrir meus olhos, o quarto estava levemente iluminado e quente, velas acesas por todos os lugares, a cama havia sido arrastada para a parede, e no lugar dela havia um circulo desenhado no chão com símbolos estranhos, cercado por velas e sobre o circulo eu me encontrava nu, deitado, com as pernas e os braços amarrados, sentia um estranho peso sobre todo meu corpo, só conseguia mover levemente a cabeça, tentei falar mas as palavras morriam dentro de mim. A porta da varanda se abriu e para minha surpresa, vi Jacinto, nu, andando pelo apartamento. Estava pálido, com a mancha rocha da corda em volta de seu pescoço, cabelos despenteados, andava de forma trôpega e desritmado, ele não podia estar vivo, senti quando seu coração parou. O que estava acontecendo? Ele estava morto.
Nesse momento ele se aproximou com seu andar estranho e se agachou ao meu lado, alisou meu abdômen e começou a falar, só que desta vez, lhe dei atenção:
- Sim amor, você me matou, não há dúvidas quanto a isso. Mas imaginei que você cometeria o erro de não queimar meu corpo e jogar minhas cinzas no terreno de uma igreja como é o modo certo de se fazer isso, matar alguém da minha gente. Digamos que a minha velha tia que me contava histórias de bruxas, me contou muito mais do que apenas suas histórias de bruxas. Sei que você não entende e nem espero que entenda, não mais. Você sabe que eles estão sentados sobre você agora? Estão segurando sua língua, seus membros, dificultando o seu raciocínio, você nunca os viu, não é do tipo de homem sensível para essas coisas, mas eles sempre estiveram por aí ao meu lado e eles me trouxeram de volta como sempre fazem. Mas de qualquer forma, você convidou a morte para entrar neste quarto hoje, e como não se pode enganar a morte, nem mesmo eles conseguem tal proeza, um de nós dois precisa partir com ela agora.
Senti o ar ficar mais gelado novamente e minha respiração foi dificultada pelo que quer que seja que não podia enxergar, mas que estava sentado sobre minhas costelas. "Eles" eram o peso que sentia sobre meu corpo inteiro e dentro da minha cabeça, segurando a minha língua dentro da minha boca.
Vi Jacinto se levantando e pegando a faca que estava sobre a cômoda, me olhou um tanto transtornado, não sei se de loucura ou amor, talvez ambos, disse:
-  Quando foi a última vez que você sentiu medo? Medo de verdade?
Novamente ele deu aquele seu sorriso redondo e grave de pessoa segura de si, que sabe o que esta fazendo...



26 de julho de 2011

A árvore.

A Árvore Vermelha - Piet Mondrian

“Um lugar bravio, santo e encantado,
Como nenhum sob a pálida lua visitado
Por mulher em prantos ou pelo demônio amado.”

Rudyard Kipling


Fortuna saiu de casa cedo, suas malas já estavam prontas, o carro previamente abastecido e revisado, a antecedência lhe acompanhava. Não conhecia o caminho, mas soube que grande parte da estrada ficava emparelhada a uma velha ferrovia que não era mais usada, podendo assim se situar, o dia estava nublado com a temperatura amena, sentia que seria uma viagem tranquila, sem imprevistos.

Tinha certa noção de onde queria chegar, por isso não se preocupou com os meandros do caminho, estava indo em direção a um cliente, em uma cidade do interior, este promovia anualmente uma festa folclórica na cidadezinha e ela era a organizadora do evento, passaria dois dias hospedada em um hotel, acompanhando os festejos.

Tudo foi antecipadamente marcado, sua antecedência era uma qualidade adquirida com o tempo, o seu maior diferencial no mundo dos eventos, cheios de imprevistos, era que, com ela, isso jamais acontecia.

Manteve a velocidade limite facilmente, sem músicas para lhe distrair os sentidos da bela paisagem que, aos poucos, o horizonte lhe permitia ver, relaxada como estava, pensou em coisas do passado, no amor, na faculdade, quando ainda virgem se apaixonou por um moço em especial, um que lhe interessava, bonito, com um aspecto serio, sem sorrisos, seguro de si.

Entregou-lhe sua virgindade, e, como imaginava, ele cuidou bem dela. Despiu-lhe cuidadosamente, a fez tremer de prazer, mas não muito, e então foi embora, como ela já esperava. Sempre imaginava com antecedência quando uma relação começaria ou terminaria e nem sequer se dava ao trabalho de terminá-la, sabia quando o companheiro tomaria a atitude final.

E há dois anos ou mais, não havia companheiro, apenas o final, que desta vez, se prolongou mais do que ela esperava. Estava sozinha, ela e a sua antecedência, prevendo-lhe os próximos passos.

O dia começava a ficar mais abafado pela chuva que se formava, abriu as janelas do carro, deixou um braço apoiado na porta sentindo o vento empurrando sua manga, colocou os óculos escuros e dirigiu mais alguns metros, até que num cruzamento da antiga ferrovia, que vez ou outra aparecia serpenteando paralelamente a estrada, estava um estacionamento de concreto no meio do nada, com uma cerca de segurança para evitar que as pessoas despencassem no pequeno barranco adiante, ali havia o carro de uma família, decidiu parar para fumar um cigarro.

Desceu do carro, e educadamente cumprimentou o casal que tinha uma filha de aparentemente nove anos, sentia-se desconfortável fumando na presença de crianças, por isso depois de um rápido aceno com a cabeça, se afastou para sentar-se na pequena cerca. A mulher da família, uma moça jovem e animada veio falar com ela, lhe disse animadamente que entrando um pouco na mata que ficava alem da cerca, descendo o barranco, depois de cinquenta metros ficava uma árvore linda, que valia a paisagem inteira, inclusive a parada ali, disse que antigamente, aquela ferrovia era muito utilizada no interior do estado e as moças e rapazes das cidades da redondeza, amarravam fitas com o nome dos viajantes nos galhos da árvore, para que estes se apaixonassem e sempre retornassem.

Fortuna achou uma história bonita, mas com o passar dos anos, havia perdido grande parte de sua sensibilidade romântica, a história a tocava, mas apenas superficialmente.

 Muito tempo depois que o cigarro havia acabado e o casal havia partido, Fortuna ainda estava sentada lá, pensando coisas sobre seus dois dias na cidade desconhecida, e sobre o seu cliente, um homem que conhecia apenas pela voz, nos inúmeros telefonemas noturnos que lhe fazia, uma voz masculina qualquer, mas com um tom educado e polido, um vocabulário tão bem elaborado, que por vezes, se via imaginando como deveria ser o dono daquela laringe masculina que vibrava com tamanha destreza.

O lugar onde estava agora ficava a menos de meia hora da cidade em que ocorreria a festa e Fortuna estava antecipada, pensou que seria interessante ver a tal árvore e fotografar com seu celular para enviar as suas amigas, que ainda não haviam perdido completamente aquela delicada veia romântica.

 Ultrapassou o limite de segurança, e desceu o barranco que tinha menos de dois metros e uma inclinação agradável de grama verde, mesmo de salto não teve dificuldade em chegar ao vale que ficava abaixo, e, depois de alguns passos, pode ver a árvore.

Parecia um salgueiro muito antigo, o tronco grosso e alto, a copa completamente seca com galhos negros retorcidos, porém, mesmo com o tempo nublado, a árvore ainda parecia simpática, e de fato, era uma visão fenomenal, quase todos os seus galhos estavam atados com fitas coloridas.

O vento as balançavam e a árvore parecia viva, brilhante, como se estivesse no auge da florescência. Fortuna percebeu que algumas fitas eram visivelmente antigas, desbotadas completamente pelo sol, pela chuva, pelo tempo, nas fitas estava escrito de maneira vertical o nome de inúmeros desconhecidos, lembrou-se que eram os nomes dos viajantes que deixaram alguém apaixonado para trás, e esta paixão, era concentrada naquelas fitas que depois de atadas aos galhos do Salgueiro, funcionavam como um farol, mostrando sempre a direção em que o viajante deveria regressar, a direção em que o amor o esperava.

Não tirou fotos, apenas admirou a beleza daquela árvore atada com fitas coloridas no meio do nada, sentia-se feliz por estar ali, e por estar como sempre, adiantada.

Uma das fitas era visivelmente mais nova, de seda vermelha, brilhante, como se tivesse sido colocada lá recentemente, Fortuna pensou no tipo de pessoa que mesmo hoje em dia, se permitia um costume tão antigo e belo.

Aproximou-se, tocou as fitas lendo os nomes nelas, todos escritos de forma vertical e repetidos três vezes, nomes completos, deixou-se imaginar como seriam aqueles desconhecidos, como conseguiram cativar alguém, a ponto de merecerem ter seus nomes ali, imortalizados. Segurou nas mãos a fita vermelha, a mais nova, e leu o nome que estava escrito nela com uma letra firme e masculina, verticalmente, em preto e com a mesma repetição: Fortuna Alonso de Medeiros

O seu próprio.

A antecedência, a certeza do que viria a seguir, que esteve sempre presente, naquele momento, lhe abandonou.



Eu, sozinho.


"Eu ando sozinha
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha."


Cecília Meireles


Todos sentem a solidão, a ausência de algo diferente de si ao redor, a minha é apenas um pouco mais acentuada, uma solidão preenchida, um excesso de mim mesmo.
Sobrevivi a minha companhia e me tolero com grande habilidade, em dias bons, pontuados de delírios de satisfação, chego a amar-me, é um amor arranhão, bem de leve, para então novamente, o constante desconforto. Olho-me, sorrio sem jeito, como se eu mesmo pedisse "com licença" e sentasse eu meu próprio lado no ônibus, para logo em seguida, me ignorar.
O que me deixa mais sozinho, é a estranha sensação de estar o tempo todo na companhia da única pessoa capaz de mudar a sorte da minha felicidade ou infelicidade, eu.
Gosto de me ocupar na minha solidão, como quem arruma uma prateleira, nestas ocasiões raras onde o impulso inicial é ordenar as coisas, nossa atenção acaba sempre se desviando para lembranças, livros, objetos ali esquecidos há tanto tempo... Já eu, costumo me desviar para uma vida que não seja a minha, e me ocupo dela, gosto disso, de colocá-la em ordem ou de desorganizá-la de vez, e então volto sozinho, sempre.
 
Se não acho caminhos, me perco sozinho,  se refaço o caminho, caminho sozinho.


27 de junho de 2011

Laços



[...]
Amei-te muito, muito!Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!…
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade! …

E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar…

O meu sonho morreu… Que desgraçada!
………………………………
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar …

Florbela Espanca, "Balada" 08/08/1916


Na prateleira estava o presente, amorrotado com a pressa que o dia em que o embrulhou exigia, o laço de fita cruzando o cubo por todos os lados, jazia empoeirado, não entregado e jamais esquecido. Era uma mácula, uma chaga aberta que o afrontava todos os dias, muito antes dos raios solares, lá estava ele, o presente. 
Prometia diariamente que o abriria, desfaria todos os laços, o daria a outra pessoa, ou se lhe servisse o tomaria para si, porém perdera a habilidade de se enganar com tais promessas, sabia que não o entregaria a ninguém, sabia que não se desfaria dele, nada dentro daquela caixa lhe pertencia, pertencia a outro.
O presente a princípio era apenas uma surpresa, adquirida em segredo e com todo o cuidado, dentro dele havia pequenos pedaços do outro, seus gostos alí dentro estavam misturados, era uma prova de afeição, de abertura, o presente era sua maneira desarticulada de dizer que o outro havia sido percebido, visto em cada mínimo detalhe, explorado e apreciado, lhe tiraria sorrisos e agrados, surgiria inesperado, no meio da festa, escrito numa mensagem invisível, com palavras mudas, inaudíveis aos ouvidos mundanos, gritando silenciosamente a mensagem de que o dia em que o outro veio ao mundo deveria ser comemorado, porque ele o conhecera.
Mas o presente nunca chegou as mãos do outro.
Desviou-se no caminho.
O destino havia lhe prometido tudo, mas no final, não lhe entregara nada.
Perdera-se do outro, não sabia exatamente quando, nem que caminho havia trilhado que o outro não lhe seguiu, ou se seguiu não se fez notar. Eram completamente diferentes, e isso nunca o assustou, o presente era uma conexão, uma caixinha cheia de similaridades para lembrar ao outro que no fundo eram um pouco iguais. Houvera um tempo em que eram ligados, não uma ligação simples e direta, mas um embaraço, eram embaraçados um no outro, tropeçando a cada passo, mas não se importavam, um jeito certo de se amarem errado. 
O presente então, nessa época se tornou um laço, unindo-os. Era um símbolo de expectativa, de ansiedade e esperança, era a promessa que se veriam, ele para entregá-lo, o outro para recebe-lo e nada mais.
E então agora o presente não era nada, era um órfão.
Olhou o presente e sorriu, triste, percebendo que dividiam a mesma sorte. O outro jamais abriria o presente, jamais desfaria o laço e libertaria a caixa de seu embrulho, colhendo as similaridades delicadas que nela haviam, jamais perceberia a mensagem oculta de que fora visto. O outro jamais lhe veria como um presente também, recheado com algumas similaridades doces e diferenças abismais, coberto com tatuagens e espaços em branco, com seu jeito tímido e desajeitado de encarar as coisas, de encarar o outro, com seu medo de se perder e não saber voltar, não.
O presente agora tinha um gosto de passado, amargo e nostalgico.
O presente estava na prateleira esquecido, mas ambos ainda estavam envolvidos pelo laço.



p.s. crônica de um presente ainda não entregue.


20 de junho de 2011

Alomorfia




Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra…
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Florbela Espanca - A mensageira das violetas



Para ele a parte mais difícil sempre estava por vir, ou já tinha ficado para trás. Estava sempre tão distante que não podia tocar a vida, sequer podia enxergá-la. Preso entre algum medo superado do passado e um medo vindouro do futuro, duas cadeias, uma em cada punho. Aprendeu a não ter certezas quanto a sua existência, no seu caso em particular certeza era uma palavra quase estranha ao seu vocabulário, raramente a empregava.
Sua realidade estava situada sobre uma base feita de quimeras fantásticas, fantásticas porém míticas e nada mais. Sobre o mar onde se encontrava, podia ver claramente o horizonte que o oprimia por todos os lados, podia ver os astros e orbes acima de si, mas tal era a profundidade do mar, que não podia sonhar com a visão de um chão.
Flutuava.
Não tinha grande densidade, era poroso, vazio, escorria-lhe o ser por todos os buracos. Seu todo sonhava em ser completo, já sua casca sonhava apenas em ser um casulo, e sozinha ao redor dele aguardava todas estações girarem ansiando pela alomorfia de seu conteúdo, de seu interior, mas esta nunca chegou. Nunca se transformou, a casca era na verdade o ultimo resquício abandonado daquele outro homem que fora um dia e partiu sabe-se lá pra onde, sabe-se lá quando.
Era uma chaga de si mesmo, vivia uma penitência por um pecado que ainda cometeria, encontrava-se sempre dentro do desconhecido, tão banal era a sua vida, que não tinha sequer idéia do que lhe aconteceria, e  mesmo assim, ainda esperava que acontecesse...


p.s. este é meu único ser possível, por hora...



5 de maio de 2011

E agora Santo Antônio?

"Santo Antônio tenha pena, Santo Antônio tenha dó! Estou ficando velho, estou ficando só!"

Agora que a união estável homoafetiva está a poucos passos de se tornar uma realidade na vida de mais de 60 mil casais homoafetivos que existem no Brasil segundo o último senso do IBGE, e sendo o Brasil o país mais católico do mundo, como fica Santo Antônio nessa história?
Sim, porque se existem 60 mil casais gays, devem existir ao menos milhões de gays solteiros a procura de um amor (o/) e muitos deles, desesperados (o/)², agora que o casamento Gay já está quase aprovado, será que rola essas simpatias pra Santo Antonio arrumar um bom casamento para os rapazes e moças que gostam do mesmo sexo? Bem, existem com certeza muitas moças heterossexuais solteiras importunando Santo Antônio neste exato momento, pode apostar que devem haver milhares de imagens do Santo de ponta-cabeça, embaixo d'água, dentro do freezer, enroladas com uma faixa, fora que nem o C.S.I. poderia encontrar o lugar onde as moças esconderam o menino Jesus que o coitado do Santo segura.
Enfim, com a aprovação da união estável homoafetiva, os gays vão entrar na tal lista de espera de Santo Antônio, e se ela for igual ao S.U.S., nós gays que estamos chegando agora vamos pegar a senha 213786322364436234329423187782130.
Triste. Para dar uma folga para o querido Santo Antônio, bem que poderia existir um Santo Casamenteiro Gay! E não é que existe!?! E por falta de um, são dois!

Reprodução: São Sérgio (à esq.) e São Baco são os padroeiros do casamento gay.

Bem, é realmente estranho pensar que existam santos gays, isso soa até como uma blasfêmia, uma vez que a religião católica e praticamente todas as religiões cristãs condenam a homossexualidade. Mas há teses de que a igreja teve, sim, santos que, no seu passado, tiveram relações com pessoas do mesmo sexo.
O caso mais famoso é de São Sérgio e São Baco, que foram mártires no início do século IV.
No começo do século IV d.C., Sergio de Resapha e Baco de Barbalissus - considerados "erastai" (casal de amantes) - viviam em Coele na Síria. Eram dois importantes nobres romanos que desempenhavam altos cargos no exército do imperador Cesar Maximiano. Sergio como primicerius, uma espécie de comandante, e Bacco como secundarius, seu auxiliar direto. O grupo que comandavam, composto de bárbaros, era chamado de Schola Gentilium (Escola dos Pagãos). A homossexualidade de Sergio e Baco não representava nenhum problema. A comunidade cristã daquela época, não só recebia bem os gays, como também os unia em matrimônio. - Este acolhimento foi descrito pelo historiador da Universidade de Yale, John Boswell (1947-1994), autor de inúmeros títulos sobre o assunto, que publicou suas pesquisas sobre os Santos da igreja no livro "Cristianismo, Tolerância Social e Homosexualidade" (Ed. Munchnik) - Convertidos ao cristianismo, Sergio e Baco foram denunciados pela recusa de participar de ritos pagãos, e quando Sergio e Baco assumiram oficialmente sua fé cristã (saíram do armário), a punição foi terrível. Ambos foram açoitados, até que Baco morreu, e Sérgio que havia sobrevivido aos açoites, teve que fazer uma peregrinação usando sandálias com pregos, até não conseguir mais se mover, quando foi então, decapitado.



O fato é que São Sérgio e São Baco viraram ícones do movimento gay, suas imagens servem à defesa da união civil entre pessoas do mesmo sexo, cujas cerimônias são seladas em muitos lugares do mundo, com a leitura da oração aos dois santos. Eles têm até um dia consagrado oficialmente no calendário Católico: 7 de outubro.

Oração pronunciada durante a cerimônia do matrimônio religioso cristão entre pessoas do mesmo sexo.  Pantaleimon 780 del Monte Athos, século XVI – traduzido do grego.

"Ó Senhor, nosso Deus e Governante, que fizeste a humanidade à tua imagem e semelhança, e lhe deste o poder da vida eterna, que aprovaste quando teus santos apóstolos Felipe e Bartolomeu se uniram, juntos não pela lei da natureza e sim pela comunhão do Espírito Santo, e que também aprovaste a união de teus santos mártires Sérgio e Baco, abençoe também a estes servidores _____ e _____, unidos não pela natureza mas pela fidelidade e pela alma. Permite-lhes, Senhor, amarem-se um ao outro sem ódios e poderem continuar juntos todos os dias de suas vidas, com a ajuda da Santa Mãe de Deus e de todos os teus Santos, porque teu é o poder e o reino e a glória, Pai, Filho e Espírito Santo."


 

30 de abril de 2011

Chá das 17h00



"Tomou seu lugar na melancólica procissão que devia passar por uma série de emoções improfícuas. Os religiosos, naturalmente, recomendavam esperança e profetizavam notícias de uma mudança em sua sorte para breve. Vários amigos também contavam a ele histórias verdadeiras mas sempre de outras pessoas a quem, depois de meses e meses de silêncio, haviam sido restituídas do maior sentido - sem o menor sentido ou motivo aparente - e receberam o derradeiro chamado da inspiração. Outros aconselhavam-no a entrar em contato com infalíveis benevolentes que podiam auxiliá-lo de maneira fidedigna em sua ascensão na vida. Roberto ia fazendo, redigindo, assinando tudo que lhe era sugerido, ou posto diante dele...
No devido tempo, quando todas as forças do destino, do fado e, inclusive, suas próprias forças de homem já tinham lamentado profundamente ou sinceramente a incapacidade de haver concluído tantas e tantas tarefas inacabadas etc. etc., alguma coisa cedeu dentro dele, e todos os sentimentos - exceto o alívio - se dissolveram em bem-aventurada passividade. O mundo de Roberto parou e ele sentiu em cheio o sacolejo dessa parada. Agora ele estava parado e o mundo girava mas ele nada tinha a ver com ele - o movimento do mundo não o afetava em nenhum sentido. Ele tinha consciência disso pela naturalidade com que não esperava mais e com que inclinava a cabeça no ângulo certo ao ouvir qualquer murmúrio de simpatia.
Com a satisfação desse alívio ele nem sentiu o tanger do tempo. No fim de mais um ano ele já havia superado a aversão física pelos bem sucedidos e felizardos, e pôde mais de uma vez, tomá-los pelas mãos e desejar-lhes uma plêiade de graças quase que sinceramente. O resultado de triunfos ou derrotas alheios, não o interessava em nada. Mantendo-se a imensa distância, ele defendia opiniões próprias - ouvia-se expondo-as, como agora, para o nada que sempre lhe escutou..."    


p.s. apenas um pensamento transcrito com o gosto amargo do chá-verde sem açúcar ainda na boca. 




8 de abril de 2011

O Diário de Roberto Rodríguez


Bridget Jones's Diary


"E foi assim, bem alí, aquele foi o momento. 
De repente,  percebi que se nada acontecesse logo 
eu viveria uma vida onde meu principal relacionamento 
seria com uma garrafa de bebida. 
E por fim, eu morreria gorda e sozinha, 
e seria encontrada três semanas depois parcialmente devorada por cães, 
ou me transformaria na Glenn Close do filme Atração Fatal."
O Diário de Bridget Jones





Roberto Rodríguez  8/4/11 
Estado civil: há espera de um milagre
Peso 95kg
cigarros 22
unidades alcóolicas 0 (m.b.)
kcal 2.432 (m.b.)
pensamentos de que serei um escritor rico e famoso, casado e feliz 0
pensamentos de que serei um frustrado, desempregado e gordo 1.345




Bem, faz muito tempo que não escrevo um post de maneira mais coloquial e pessoal, sem fru-frus ou linguagem poética, por isso peço agora aos meus caros leitores que me dêem uma colher de chá. 
Decidi escrever este post para contar a vocês (e principalmente a mim mesmo) toda a verdade sobre Roberto Rodríguez
Primeiro vou contar a vocês uma das maiores verdades que descobri nos últimos tempos, beber não engorda, ou pelos menos "não beber" também não emagrece, porque tenho estado limpo há quase duas semanas e não emagreci nadinha de nada, mas voltando ao assunto Roberto Rodríguez, inspirado pela musa de todos os solteiros/gordinhos/esquisitos/fora dos padrões/atrapalhados, a nossa querida, idolatrada, salve salve Bridget Jones, decidi tentar transcrever a minha atual realidade com o intuito de analisá-la e mudá-la. Primeiramente tenho 23 anos, e me sinto como a cigarra que cantou o verão inteiro, e agora que chegou no inverno de sua vida não tem porra nenhuma pra comer, e depende humilhantemente das migalhas das formigas. Não, eu não tenho vida amorosa, acadêmica, profissional, nada, N-A-D-A. Desde os meus 17 anos, quando me atirei ao mundo, tenho cometido uma série de pequenos erros, que me fazem pagar até hoje por suas consequências, nada assim de muito grave, mas é complicado. Sou um homem complicado por natureza, gay, gordinho, tatuado, etc e etc. Sou preguiçoso por natureza e extremamente acomodado, poderia hoje estar gozando de uma vida maravilhosa, mas infelizmente cometi o grave e imperdoável erro de colocar a minha vida nas mãos de outras pessoas, sempre. Sinto como se a minha felicidade nunca de fato, tivesse dependido de mim, e sim de outrem. Tipo, o que fulano vai pensar? Será que siclano vai me ajudar? E se beltrano disser não? E se fulano não gostar? E por aí vai. Mas e o que EU penso? Poxa, eu cobro tanto que o mundo me enxergue de uma vez, ou pelo menos que alguém me enxergue nesse emaranhado de pessoas, mas eu me olho todos os dias no espelho e ainda não tenho certeza do que vejo lá dentro. Não me refiro a termos meramente físicos, reclamo que na minha vida profissional ninguém nunca explorou meus inúmeros talentos, mas eu mesmo nunca me explorei nesse sentido, comecei a tentar coisas novas faz apenas um mês, e fazem exatos oitenta e quatro meses que estou no mercado de trabalho. Reclamo que os caras com quem saí nunca perceberam a pessoa original que eu era e nunca me trataram como eu achava que merecia, mas como tenho me tratado nesses anos todos? Me recriminando, me censurando, me punindo, me privando, me julgando sempre insuficiente? Fazem exatos 84 meses também, desde que dei meu primeiro beijo, e nunca tomei nenhuma atitude a respeito. Preocupante. Quanto a minha família e as minhas amizades também, perdi inúmeros amigos por ser cabeça dura demais, por levar a risca a regra do oito ou oitenta de uma maneira imatura, por descontar neles a insatisfação que tenho com a pessoa que eu sou, por não me sentir especial quando estou sozinho, e querer que eles estejam lá pra levantar minha moral, o que eu quero deles, um troféu de melhor-amigo do ano? Não Sr.Rodríguez, as coisas não são por aí, não acredito nessa psicologia de fundo de quintal dos livros de auto-ajuda, e nem acredito na auto-estima. Não que eu não me ame as vezes, mas a auto-estima se tornou uma espécie de Santo Graal do século vinte e um. Todos dizem "você precisa de mais auto-estima, se valorizar mais!" mas porra, a auto-estima não é um estado de elevação espiritual ou mental que você atinge como o Nirvana, é o resultado de uma equação momentânea, por exemplo: você acorda numa sexta-feira, descobre que milagrosamente a fada-do-abdomen levou sua barriga embora da noite pro dia, sua calça que não servia a dois anos volta a servir, seu rosto amanhece sem espinhas, você faz a barba e sua pele não fica irritada, seu café sai milagrosamente maravilhoso, você vai pra rua e pega seu ônibus na hora, seu trabalho é tranquilo, você volta pra casa toma um banho delicioso, sai pra noite se sentindo um Deus transbordando auto-estima, claro que não é todos os dias que isso acontece, portanto, menos papinho de auto-estima pro meu lado. Além do que, a auto-estima só ajudou até hoje quem não presta, o que vejo de gente por aí que não é porra nenhuma se sentindo um presente de Deus para o mundo só porque tem a auto-estima elevada, e o que vejo também de pessoas maravilhosas, incríveis, sofrendo sozinhas porque querem atingir um grau de perfeição máximo e então encontrar a tão sonhada auto-estima, por favor né? Não aceito mais isso de problemas com a auto-imagem, auto-estima, auto-ajuda etc, a única palavra com "auto" que define meu humor é automóvel, que por acaso eu não tenho, então já viu.
Não quero mais esperar coisas da vida, coisas que não vão aparecer do nada, nem esperar que um dia eu encontre embaixo da cama a minha auto-estima quando estiver procurando a bolinha do meu piercing, nada disso. Prometo sim, não depositar mais minhas frustrações sobre ombros que não sejam os meus, a não ser quando estiver extremamente ébrio, prometo não cobrar dos outros uma atitude que eu mesmo não tomo, prometo também perder meu medo de começar coisas novas, de me livrar de coisas antigas, prometo não achar que qualquer um que aparecer na minha frente vai ser o homem da minha vida, e prometo dar a qualquer um a chance de provar que não é um qualquer também, e prometo me dar a mesma chance.
Tenho a partir de hoje (se o mundo não acabar em 2012) 84 meses para reescrever toda essa história. E quem sabe até, um final feliz, ou um começo... Talvez, seja hora de um novo começo.




Sem mais meus queridos, 
foi só um desabafo de uma sexta-feira.
Beijos sinceros.