26 de setembro de 2011

Coala na sala.




Não houve nenhum medo no grito. Ele tinha apenas um som de choque, uma nota de embriaguez, uma sugestão de pura idiotia da minha parte. Foi um som estranho até para mim mesmo que no momento não gozava de todos os sentidos. Havia terminado uma discussão seis horas antes daquilo acontecer, e com ela havia terminado um relacionamento de um ano agonizante, dividindo um quarto com uma janela irritantemente emperrada e uma cama sufocantemente pequena para nós dois, foi inevitável. Fim era a palavra que tanto buscávamos, e enfim encontramos.
Ricardo levou embora suas poucas coisas do apartamento horas antes, e decidi que não ficaria lá olhando-o retirar-se aos poucos de minha vida, se num futuro próximo ou distante, que seja, eu me arrependesse daquilo sozinho, iria me culpar por não tê-lo agarrado na porta e implorado que ficasse, então me poupei deste futuro arrependimento e quis gozar ao máximo o momento em que de fato, não queria que ele ficasse, saí pra beber.
E bebi o que não havia bebido em anos, me descobrindo desacostumado ao álcool.
Horas depois estava sendo carregado por amigos até a porta do edifício, com dificuldade e um andar trôpego cheguei ao elevador e me encostei, ele fez seu trabalho e me deixou no quinto andar, quase em frente a porta que estava trancada, me colocando numa luta feroz entre minha embriaguez e a minúscula fechadura, tendo como pivô a chave se escondendo em um dos doze bolsos da minha mochila, entrei, e então, o inevitável grito.
Ele estava sentado no sofá, segurando algo que eu ainda não havia identificado, escutou meu grito mas não se assustou, continuou segurando o que agora eu sabia ser uma lata de Pringles, avistei batatas espalhadas pelo chão e farelos sobre todo o sofá vermelho que Ricardo havia escolhido meses antes, e que eu ainda pagaria por meses adiante. Ele não era Ricardo, era um bicho.
Me aproximei devagar buscando resgatar a sobriedade lá do fundo da minha alma, não temia um ataque vindo daquilo pois me parecia estranhamente fofo e desajeitado para atacar qualquer coisa, estava calmo e manso, e sequer me acompanhava com o olhar, olhava para a lata de Pringles em sua mão (pata?), me aproximei, estava muito ébrio para permanecer em pé, então sentei em frente a ele no outro sofá também vermelho.
Junto com a pouca sobriedade recém adquirida me veio a notícia de que sabia o que era aquele bicho, não lembro onde havia absorvido tal informação, que se não fossem os acontecimentos daquela estranha madrugada, julgaria ser completamente inútil. Ele era peludo, gordo e meio pequeno, era um coala, e estava sentado no meu sofá.
Sabia que não se tratava de um bicho nacional, além de sua cara estranha não estar estampada em nenhuma cédula, eu sabia que era australiano, e então me perguntava o que estaria fazendo aquele bicho australiano no meu sofá. Ele sem dúvida não parecia muito preocupado com sua estadia no meu apartamento, estava quase confortável, se posso assim dizer, sentado como se fosse gente e comendo pringles lá. Olhou para o aparelho de som desligado, e ficou parado , então olhou para mim, eu olhei pra ele, um olhar assustado, nós humanos temos o costume de temer as coisas adoráveis, e aquilo era uma das coisas mais adoráveis que já havia visto.
Esfreguei com as costas das mãos os meus olhos e mentalmente tentei recontar as bebidas que havia tomado, nada que em outros tempos não houvesse ingerido antes, será que havia sido drogado? Já havia experimentado algumas drogas também, que me deixavam elétrico, faminto ou até mais lento, mas jamais havia tido alucinações antes, ainda mais uma tão real quanto aquele bichinho comendo meu pringles  e sentado no meu sofá. Percebendo minha total falta de tato para lidar com aquela situação, ele enfiou seu braço dentro da lata de pringles e vasculhou o tubo, até que seu cotovelo desapareceu la dentro, ou algo parecido com um cotovelo, não sei se os bracinhos destas criaturas possuem as mesmas articulações que as nossas, ele retirou uma rodela de batata intacta, e a apontou em minha direção, se fosse humano poderia dizer que estava me oferecendo a tal batata, mas não era humano, e mesmo assim, estava de fato me oferecendo aquela batata que eu mesmo havia comprado semanas antes, para uma possível fome, ou uma ocasião de ociosidade onde coisas como panelas, fogões e louça acumulada sobre a pia fossem o último caminho que me levaria até a minha comida. Bastava abrir a lata com seu barulho de champanhe e "flop" o jantar estava servido. Eu havia comprado aquela batata, e devido a embriaguez me senti momentaneamente ofendido com o bicho me oferecendo o que era meu por direito. Então num gesto brusco, quase animalesco, tomei a batata da mão dele e enfiei-a inteira na boca de uma vez. Mastiguei fazendo barulho, um som que me irritava mas sentia que demarcaria meu território, mas o bichinho, tímido que era, nem deu atenção, voltou a comer a sua própria batata em silêncio olhando o nada a sua volta.




Decidi que minha vida não podia ficar mais estranha daquele momento em diante, em que um coala australiano apareceu comendo pringles sentado no meu sofá. Então fiquei estranhamente mais relaxado, e percebi que o bicho fitava curioso o aparelho de som, colocado em seu espaço destinado no raque da sala, dei um sorriso involuntário e decidi ligá-lo só pra ver a reação do ser fofo. Me senti um cientista no meio de um experimento, abaixei cautelosamente o som para não assustá-lo mais que o necessário, afinal não sabia nada sobre essas criaturas, nem sabia que dava isso no Brasil, vai que ele ficasse violento ou tivesse uma doença contagiosa, me preveni ficando a uma distância segura e liguei o som. O bichinho parou de comer e ficou atento olhando as lusinhas do aparelho descerem e subirem conforme os graves da música, fui mudando os cds que ali estavam colocados, inutilmente cabiam doze na disqueteira, uma gulodice comum na época que precedeu o pendrive e a tecnologia USB, cheguei no cd de Elis Regina, ela cantava alegre uma de suas músicas que na hora não pude identificar, e o bichinho ao que me parece, ficou mais relaxado, e voltou a comer sua batata. O coala na minha sala tinha um gosto musical mais refinado que o próprio Ricardo, e isso me fez rir novamente.
Enquanto ele estava entretido com a batata e a música, decidi pesquisar sobre a criatura, liguei o notebook que estava em stand by na mesa da sala, digitei "coala" no google, e imediatamente a wikipédia me avisou que "ao perder a sua casa e alimento, o coala se muda e pode chegar a povoamentos ou cidades, onde via de regra morre por atropelamento ou é caçado por cães, a caça ao coala é um costume na Austrália e sua carne é muito apreciada pelos povos aborígenes.".Fiquei estranhamente triste ao ler o destino daquele bichinho que não fazia nada a não ser ocupar seu tempo sendo fofo, apesar de que toda a sua fofura de fato dava a impressão que sua carne devia ser saborosa, ainda mais a deste em particular que já estava recheado de pringles, que mundo cruel, pensei.




O que eu deveria fazer? Estava lutando para manter o mínimo de racionalidade que a situação e a bebida me permitiam, mas quando um coala aparece na nossa sala (e acho que essa sensação bem específica de ter um coala na sua sala, é uma das poucas coisas que posso afirmar que só eu senti), fica mais difícil manter-se racional. Tinha medo de chamar a polícia ou os bombeiros, afinal se o C.S.I. achasse o pringles no coala, eu poderia ser indiciado por contrabando de animais exóticos, silvestres, gordos ou qualquer coisa do tipo. Já que sóbrio não ficaria mesmo, fui até a geladeira contornando o sofá do coala, ou melhor, o meu sofá, onde de lugar nenhum surgiu um coala e se sentou naquela noite. Abri a porta superior do freezer e enfiei minha cabeça la dentro numa tentativa literal de refrescar as idéias e pensar mais claramente. Então preenchi o copo com vodka, uma, duas, três, quatro vezes. Num momento absurdo de epifânia na cozinha, quase chorei ao pensar que o coala poderia estar com sede, todos me dizem que fico mais sensível e até sociável quando bebo, mas jamais havia me importado com a hidratação corporal de criatura alguma, nem mesmo Ricardo, e o pobre coala ainda havia devorado quase sozinho uma lata de Pringles apimentada, o bichinho poderia estar morrendo naquele momento e eu lá me embriagando, isto é o que eu poderia chamar de "fugir da realidade", a minha realidade no momento, é que tinha um coala na minha sala sedento, e eu ali bebendo, pensando no preço exorbitante que haviam me cobrado por aquela garrafa de vodka. Abri o armário e procurei algo para servir a água fresca ao coala, uma tigela? Um copo? Como daria água aquilo? Peguei um recipiente plástico e o enchi de água. Voltei a sala.
O Coala estava parado sentado em seu lugar no sofá e ouvindo Elis, me aproximei cautelosamente dele, e empurrei a tigela de água em sua direção, ele se apoiou desajeitadamente nas patas da frente e começou a cheirar, instintivamente colocou a boca na água e sorveu o liquido, mas de uma maneira diferente de um cachorro ou gato, não sei dizer como, mas foi bem diferente e mais engraçado de se ver.
Notei que em cima do aparelho de som, jazia um pendrive que não era meu, e certamente não era do coala, era do Ricardo com certeza, aí então a ficha caiu, ele havia estado no meu apartamento antes do coala... Ele era o responsável por aquilo tudo, com certeza instalou alguma câmera em algum lugar do ambiente e me mandaria via msn o link do vídeo já postado no youtube intitulado: O Bêbado e o coala.
Não permitiria isso, nem comigo, nem com o pobre animal inocente, peguei o celular do bolso e disquei seu numero quase de modo mecânico, ele atendeu, sua voz demonstrava claramente que tinha acabado de acordar:
- Alô?
- Ricardo, o que é este animal no meu sofá?
- Hã?
- Ricardo, eu te fiz uma pergunta, é bom ter uma resposta... O que este animal está fazendo comendo pringles no meu sofá?
- Já cansei dessa merda Felipe, se você ficou bêbado, desceu a Augusta, pegou um gay qualquer e levou pro apartamento, eu não sou obrigado a saber, quando você vai começar a agir como um adulto?
- Não seja cínico Ricardo, você levou suas coisas do meu apartamento hoje, mas obviamente esqueceu uma coisa extremamente importante aqui, só não sei se foi propositalmente.
- O quê? O meu pen-drive?
- Não Ricardo, um COALA!
- Olha aqui Felipe, cansei desse seu sarcasmo imbecil, desse teu mau-humor crônico, é apenas a porra de um pen-drive, amanhã eu mando alguém pegar, fica tranqüilo.
- O Pen-drive ou o coala?
- O que?
- Ricardo, este animal já até bebeu água naquela que um dia foi nossa casa, você não entende isso? Ele está olhando pra mim enquanto falo com você agora, me explica isso.
- Felipe, você é fraco pra bebida, não percebe o papel de palhaço que está fazendo? Ligando a essas horas pro seu ex, enquanto o menino que você levou pro nosso ex lar fica aí te olhando, e comendo pringles, e bebendo água, e sei lá mais o que ele esta fazendo, não me interessa! Eu já estou saindo com outra pessoa também!
- Você está saindo com o veterinário do Zoológico Municipal?
- O que você está insinuando? Que eu também sou um animal? Esta na moda chamar os outros de animal como está fazendo?
- Mas realmente apareceu um animal no nosso apartamento Ricardo, não estou brincando, aquele animal famoso da floresta austra...
- O da nota de vinte? Pois Chame o IBAMA, dê banana a ele...
- Vou dar uma banana você vai ver aon...
- Ah, cansei...
Desligou na minha cara.
Coloquei o aparelho na base, e me sentei novamente no sofá em frente ao coala. Ele me olhava com reprovação, mas não era um mérito dele, todos me olhavam com reprovação desde sempre, acendi um cigarro e traguei profundamente. Ele novamente observava o nada ao seu redor, meu deus, eu estava ficando louco. Apaguei o cigarro e me deitei no sofá, abaixei o som do aparelho e o coala pareceu não se importar, ele se virou de costas para mim e apoiou a cabeça no encosto do sofá, começou a respirar mais lento, e adormeceu fazendo um barulho estranho.  
O esgotamento físico e mental de um dia de trabalho, separação, bebedeira e animais exóticos se abateu de uma vez sobre mim, e não lembro como, mas adormeci irresponsavelmente, largado mesmo.
Acordei com o sol invadindo a sala, junto com a dor de cabeça invadindo meu crânio, e minha colega de trabalho invadindo o meu apartamento e recolhendo os pedaços de pringles do chão e do sofá, eu ainda tinha sinais de álcool no meu sangue e não conseguia compreender a realidade direito:
- Janaína?
- É, sou eu Felipe, você tá bem? Vim te dar carona pro trabalho, eu cheguei aqui encontrei o Ricardo descendo, ele me deu a chave dele e disse que você estava de ressaca da noitada de ontem, daí eu entrei.
- Ué cadê ele? - disse eu me levantando e desajeitadamente revistando cada cômodo da casa.
- É Felipe, ele foi embora, eu sei que deve ser estranho, mas você vai ficar bem meu amigo.
- Mas eu não entendo Janaína, como ele apareceu aqui? Eu dividi minha pringles com ele, eu dei água pra ele beber numa tigela!
- Numa tigela? Não me admira que você esta solteiro, apesar que dividir a pringles é uma idéia bem romântica, acho válido...
- Hã? Mas você chegou a ver ele indo embora? Por onde ele foi? Pela árvore encostada na janela? Aquele animal ingrato!
- Nossa Felipe, coitado, ele foi de elevador mesmo, foi onde encontrei ele, ele...
- Mas como!? Como ele conseguiu...
- Não tem segredo né Felipe, você aperta um botão, a porta abre, aperta outro a porta fecha, agora vai se arrumar, que a Santos ja está um inferno, a gente vai se atrasar horrores.
- Não entendo mesmo Janaína, o Ricardo levou ele embora?
- Ele quem? O Pen-drive?
- Não, o COALA!
- Haha, Felipe seu sarcástico, vai se arrumar, vai...
Naquela manhã tomei um banho demorado, e passei dois dias ainda meio distraído, pensativo, pior do que ver um fantasma, uma assombração, é ver um coala comendo pringles. Como Jung viria isso? O coala seria o arquétipo do quê? Pensei em procurar ajuda profissional, mas sabia que não estava louco, duas vezes eu fiz tudo de novo, bebi as mesmas bebidas no mesmo bar, voltei do mesmo jeito, e abri a porta, esperando que a repetição daquele ritual trouxesse o coala de volta, queria revê-lo por duas razões: a primeira é que preciso provar a mim mesmo que não estou ainda tão louco, e a segunda é porque me apeguei ao bichinho, tínhamos gostos parecidos, Pringles, Elis,etc... Eu sei o que vai acontecer, um dia eu vou contar essa história como "O dia em que bebi tanto que vi um coala na minha sala!", mas por enquanto está tudo bem... Acho que preciso de um lexotan.






p.s. inspirado em meu amigo Felipe. 




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