30 de agosto de 2011

Malefício.


"O maior poder dos feiticeiros
 é passar seus problemas
 para outras pessoas..."

Provérbio Indiano

“La Lune est diabolique“, Jacinto me disse isso com seu francês ensaiado e pobre em sotaque enquanto acendia um incenso e o queimava na varanda, disse isso com aquele sorriso redondo e grave de pessoa segura que sabe o que esta fazendo.
Estávamos nus, na varanda de seu pequeno apartamento num conjunto habitacional miserável, mas com um charme peculiar de onde colhíamos a vista de lugar nenhum.
Toquei seus ombros e desfrutei aquele momento enquanto ele olhava admirado algo que julgava estar diferente na mesma lua de todas as noites, não lhe dei atenção e continuei a fumar.
Havia nele tanta coisa que não me interessava, como a sua tatuagem no braço com um símbolo que ele próprio desconhecia mas sempre que alguém lhe perguntava sobre, dizia sorrindo que era para sua proteção. Na verdade sempre odiei esse tipo de gente iludida que acredita em coisas que não se pode ver ou tocar, mas Jacinto era diferente, era o tipo de pessoa suave e encantadora, que se nota mesmo sem querer, que atrai para si tudo o que está ao seu redor como se fosse o ponto de referência de todo o lugar, como se o universo existisse apenas sob seus pés e acima de sua cabeça.
Eu o adorava e naquele momento onde já sabia que teria que matá-lo, me penitenciava sozinho. Eu consegui uma boa quantia de dinheiro quando permiti que um velho estrangeiro usasse meu corpo para suas sujeiras, golpe de sorte eu sei, e Jacinto sabia, nunca me disse nada mas sabia. Nunca me perguntou, nunca questionou minha vida noturna. De qualquer forma, sabia o quanto ele me amava, sabia que iria atrás de mim até no inferno se precisasse, então para que eu fosse completamente livre agora que minha vida finalmente começava a andar, ele precisava morrer.
Ninguém de fato daria falta dele, um homem sem família, pobre e sozinho que ocupava seu tempo trabalhando de garçom, conquistando o pouco que lhe era extremamente necessário, sem ambições e se divertindo lendo coisas sobre o anormal, dizia que uma tia lhe contava histórias das bruxas de verdade que escaparam da inquisição vindo nos navios portugueses para o Brasil, vinha de uma família problemática, quase todos os seus parentes eram fanáticos religiosos de alguma seita e ele perdera contato com eles há anos quando se mudou para a capital.
Com uma vida tão exótica, Jacinto merecia uma morte de cinema, passional, cuidadosamente escolhida. Foi assim que reservei a corda que usaria naquela noite e a ocultei previamente embaixo do meu travesseiro.
De volta ao leito, nos encostamos como sempre fazemos quando eu durmo com ele, passei uma perna no meio de suas coxas, e pedi que se deitasse de costas para mim sobre meu braço esquerdo, ele obedeceu naturalmente. Esperei sentir seu corpo adormecer, então puxando a corda com a mão direita que estava livre, enrolei-a nos punhos, um de cada vez, deixando entre eles um hiato suficientemente longo para o tamanho de seu pescoço e então, num puxão, o lacei de uma vez e o puxei de costas contra meu peito, ele ainda estava entorpecido do sono quando percebeu o que estava acontecendo, se debatia, mas de costas não podia fazer muita coisa, eu havia escolhido a posição exata, pensei. Ele me agarrava, como quem se agarra a um tenro fio de vida, e então, o peso. Senti seu corpo endurecido, sem vida, um arrepio, ele estava morto e eu o havia matado pelas costas, covardemente. Desfiz o laço e ele caiu na cama, olhos arregalados fixados no nada. O quarto estava escuro e o luar que vinha da janela descortinada, deixava tudo pálido, como num filme antigo, preto e branco, seco, sem sangue.
Tomei um banho e arrumei minhas coisas, limpei cada vestígio meu daquele lugar morto, cobri seu corpo com um lençol e fui à varanda uma última vez fumar um ultimo cigarro, iria parar com aquilo, não queria morrer, não podia morrer agora. O ar estava gelado e o luar realmente parecia diferente. Senti uma leve tontura, talvez devido ao choque dos acontecimentos. O frio aumentou e eu entrei no apartamento, minha visão ficou estranha, escurecida, turva, os sons da cidade agora pareciam vozes na minha cabeça, me chamavam de assassino. me apoiei na cômoda porque minhas pernas falhavam, olhei no espelho tentando resgatar qualquer vestígio de força, me agarrava à lucidez mas meus olhos se fechavam contra minha vontade, quando olhei novamente no espelho vi que não havia mais corpo sobre a cama, só o lençol, liso, sem conteúdo, sem o recheio.
Então caí.
Os sons da cidade agora realmente eram vozes, não as entendia mas gritavam com ódio, meus olhos fecharam ou foram fechados, não sei por quanto tempo.
A primeira coisa que senti foi um odor estranho, não conseguia distinguir o que era, se o olfato é o sentido da memória nunca havia entrado em contato com aquele odor antes, aos poucos consegui abrir meus olhos, o quarto estava levemente iluminado e quente, velas acesas por todos os lugares, a cama havia sido arrastada para a parede, e no lugar dela havia um circulo desenhado no chão com símbolos estranhos, cercado por velas e sobre o circulo eu me encontrava nu, deitado, com as pernas e os braços amarrados, sentia um estranho peso sobre todo meu corpo, só conseguia mover levemente a cabeça, tentei falar mas as palavras morriam dentro de mim. A porta da varanda se abriu e para minha surpresa, vi Jacinto, nu, andando pelo apartamento. Estava pálido, com a mancha rocha da corda em volta de seu pescoço, cabelos despenteados, andava de forma trôpega e desritmado, ele não podia estar vivo, senti quando seu coração parou. O que estava acontecendo? Ele estava morto.
Nesse momento ele se aproximou com seu andar estranho e se agachou ao meu lado, alisou meu abdômen e começou a falar, só que desta vez, lhe dei atenção:
- Sim amor, você me matou, não há dúvidas quanto a isso. Mas imaginei que você cometeria o erro de não queimar meu corpo e jogar minhas cinzas no terreno de uma igreja como é o modo certo de se fazer isso, matar alguém da minha gente. Digamos que a minha velha tia que me contava histórias de bruxas, me contou muito mais do que apenas suas histórias de bruxas. Sei que você não entende e nem espero que entenda, não mais. Você sabe que eles estão sentados sobre você agora? Estão segurando sua língua, seus membros, dificultando o seu raciocínio, você nunca os viu, não é do tipo de homem sensível para essas coisas, mas eles sempre estiveram por aí ao meu lado e eles me trouxeram de volta como sempre fazem. Mas de qualquer forma, você convidou a morte para entrar neste quarto hoje, e como não se pode enganar a morte, nem mesmo eles conseguem tal proeza, um de nós dois precisa partir com ela agora.
Senti o ar ficar mais gelado novamente e minha respiração foi dificultada pelo que quer que seja que não podia enxergar, mas que estava sentado sobre minhas costelas. "Eles" eram o peso que sentia sobre meu corpo inteiro e dentro da minha cabeça, segurando a minha língua dentro da minha boca.
Vi Jacinto se levantando e pegando a faca que estava sobre a cômoda, me olhou um tanto transtornado, não sei se de loucura ou amor, talvez ambos, disse:
-  Quando foi a última vez que você sentiu medo? Medo de verdade?
Novamente ele deu aquele seu sorriso redondo e grave de pessoa segura de si, que sabe o que esta fazendo...



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