24 de maio de 2012

Par de luvas azuis.






Filho, lego-te a virtude, a pena que não mente. 
  Outros ensinar-te-ão a felicidade.
Virgílio


Tem sido observado em todas as eras que a mudança quando derradeira, se estabelece. Foi assim com meu filho mais velho. Desde seu nascimento, é uma criatura fadada a ser imposta sobre a existência de outras, foi imposto a mim e a sua mãe no delírio de nossa mocidade, sua presença ainda pequenina, completamente inocente, nos amadureceu quase que instantaneamente.
As esferas giraram, e meu  filho continuou com sua missão de impor-se sobre nossas vidas, era algo tão natural de sua alma esta imposição de si, que mal a percebíamos, até outra mudança se estabelecer. Lembro perfeitamente quando sua mãe me chamou, e me contou, com sua simplicidade de mulher sensível a todo o universo, que nosso menino gostava de outros garotos, inclusive naquele momento sofria por um.  
Me pouparei agora da hipocrisia do mundo e da palavra decepção, até mesmo da palavra surpresa, pois não havia nada disso, sempre soube que ele não era o rapaz convencional, mas sentia algo especial nele, algo que o levaria adiante do ponto em que todos nós chegamos.
Mas não conseguia lidar com a situação do meu filho apaixonado pelo filho de alguém, afinal devotei minha vida as mulheres, em especial a sua mãe. Não saberia como julgá-lo, não saberia como me portar com o outro. Sofri por um tempo do “complexo de José”, criando um filho singular que não poderia ser meu, não se parecia comigo, e enquanto me fazia José, sua mãe fazia-se Maria, intercedendo por ele em nossas conversas na cama, mas como progenitores, desde os primórdios da evolução lutamos para manter as coisas que são nossas, e como um neandertal lutei, não muito confesso, mas mantive-me pai.
Depois de passar uma temporada na capital fazendo faculdade, ele voltou a morar conosco, sentíamos ele um tanto distante da realidade, perdido, foi quando se envolveu com um outro rapaz, chegamos até a ficar aliviados naquela ocasião, mas pressentimos o desastre quando o até então perfeito pretendente se negou a acompanhá-lo no cinema para assistir os tais ‘X-Men’, banal demais, eu sei, mas só quem o criou sabe o valor que ele dá pra esses mutantes com quem tanto se identifica.  “O dia dos namorados esta chegando, vamos ver se eles sobrevivem!”, sua mãe quase como uma sacerdotisa pitonisa profetizou.  Meu filho estava passando por algumas dificuldades financeiras e pediu que ela comprasse o presente de “dia dos namorados”que ele entregaria ao rapaz, ela por sua vez me delegou essa missão, afinal era homem e saberia o que comprar. Decidi comprar para o rapaz que ainda não conhecia um isqueiro Zippo, um presente agradável de se receber. Ela me aconselhou a comprar um preto afinal o tal rapaz era ‘roqueiro’, mas talvez por uma intuição paterna, se é que isso existe, comprei um azul claro, que era a cor favorita do meu filho.
E então o dia dos namorados passou, meu filho não saiu de casa, segundo sua mãe, parece que o tal do rapaz havia “desaparecido”, mas naquela noite (dois dias depois), ele passaria em casa para que ambos conversassem e se acertassem em relação ao desencontro do dia dos namorados.
Da janela da sala observei meu filho no portão esperando pelo rapaz, ele acendeu um cigarro com o isqueiro Zippo azul claro. Obviamente sua decisão estava tomada.
Hoje ele está solteiro faz um bom tempo, acredito que a maturidade tenha diminuído extremamente sua vontade em tolerar as pessoas, não o culpo. Esses dias me pediu que comprasse um par de luvas azuis, mas um modelo sem dedos para que pudesse escrever. Estou ciente que o dia dos namorados se aproxima e que sua situação financeira também não anda muito boa, mas sua mãe me disse que ele ainda não esta devidamente envolvido com ninguém, ela apenas riu enquanto fazia seu café diário, desdobrando o aroma dos grãos por toda a casa, “você precisa estar ciente que como pai, você ainda é o único homem de quem ele sempre terá a certeza do amor absoluto, sincero e abnegado, com todas as convenções sociais de pai e filho, etc...” 
Não que isso não seja verdade, afinal amo-o, mas sempre esperei e creio que ele também esperava, um pouco mais de felicidade em sua existência do que ganhar do pai um par de luvas azuis do pai. Mas já diria o poeta, muito melhor viver sem felicidade do que sem amor.





Crônica inspirada em minhas inusitadas aventuras com meu pai.
Afinal, a coisa mais importante que um pai pode fazer pelo filho, 
é amar a mãe dele, basta isso, e todas as lições são aprendidas.




5 comentários:

  1. Sinto-me contemplado com esse pai, muito mais do que pela mãe, diga-se de passagem, pois dele que eu sempre posso esperar esse amor, que vc menciona no texto. No entanto, eu que tenho comprado os meus presentes de dia dos namorados. Confesso que eu esperava outra coisa desse texto, com esse título e ainda bem que foi assim, pq fui pego em uma surpresa sutilmente bela. Bjo.

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  2. Que lindo. Emocionei. Me lembra o dia que meu pai, mesmo sabendo-me gay, comprou, a meu pedido, uma Playboy. O cuidado pra que eu não me chocasse foi hilário. Pai, apesar das problemáticas que podem nascer quando a sexualidade é mais diversa, sempre é pai.

    Beijo.

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  3. Que lindo! Tocante! A vida dá umas vira voltas estranhas, mas no final, ela sempre mostra o melhor caminho. Saudades. Escreva mais. Beijos meus!

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  4. ...e tudo que é paternal faz impor, antes de mais nada, um começo! uma instituição de significados previstos pela armação da língua. mas, numa força contrária, o sentido luta contra, fazendo, assim, resistir a linguagem. só consigo enxergar o marginal significado do eu estranho-filho que resiste no fazer literário a um pai que tenta esconder a enunciação dos preconceitos no amor incondicional. maturidade, elegância poética e mecanismos narrativos mais sofisticados. ai, mas as vírgulas, hein? <3 parabéns, kritinho!

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