20 de junho de 2011

Alomorfia




Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra…
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Florbela Espanca - A mensageira das violetas



Para ele a parte mais difícil sempre estava por vir, ou já tinha ficado para trás. Estava sempre tão distante que não podia tocar a vida, sequer podia enxergá-la. Preso entre algum medo superado do passado e um medo vindouro do futuro, duas cadeias, uma em cada punho. Aprendeu a não ter certezas quanto a sua existência, no seu caso em particular certeza era uma palavra quase estranha ao seu vocabulário, raramente a empregava.
Sua realidade estava situada sobre uma base feita de quimeras fantásticas, fantásticas porém míticas e nada mais. Sobre o mar onde se encontrava, podia ver claramente o horizonte que o oprimia por todos os lados, podia ver os astros e orbes acima de si, mas tal era a profundidade do mar, que não podia sonhar com a visão de um chão.
Flutuava.
Não tinha grande densidade, era poroso, vazio, escorria-lhe o ser por todos os buracos. Seu todo sonhava em ser completo, já sua casca sonhava apenas em ser um casulo, e sozinha ao redor dele aguardava todas estações girarem ansiando pela alomorfia de seu conteúdo, de seu interior, mas esta nunca chegou. Nunca se transformou, a casca era na verdade o ultimo resquício abandonado daquele outro homem que fora um dia e partiu sabe-se lá pra onde, sabe-se lá quando.
Era uma chaga de si mesmo, vivia uma penitência por um pecado que ainda cometeria, encontrava-se sempre dentro do desconhecido, tão banal era a sua vida, que não tinha sequer idéia do que lhe aconteceria, e  mesmo assim, ainda esperava que acontecesse...


p.s. este é meu único ser possível, por hora...



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