10 de março de 2013

A Macaca Catarina




"A macaca Catarina" 
Décio Bittencourt

Trabalhou na enxada a vida inteira
Sem médico, sem padre, sem escola,
No final de uma existência de canseira
A recompensa foi pedir esmola.

De tanto ficar vazia pedindo, pedindo,
Pedindo, pedindo, pedindo, 
Surtou o surto da revolução 
E veio a lei, ora a lei, 
Ninguém chorou, eu chorei.

Morreu a macaca! Catarina* morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!

O tuberculoso que escreve cuspindo
Um poema vermelho na página fria
Do cimento da calçada, 
Tem duas mãos fechadas la dentro do peito, 
Lei sem dinheiro não é lei.
No cubículo o tuberculoso aguarda a 
Hemofilia fatal. 

Não há vagas, não há vagas, não há vagas
Não há vagas, não há leito, não há leito,
E ele tem as duas mãos fechadas lá dentro do peito.
Lei sem dinheiro não é lei, 
Ninguém chorou, eu chorei. 

Morreu a macaca! Catarina morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!

O operário, a máquina comeu inteirinho
O operário virou picadinho sepulto no ferro
O pistão da máquina parece um punho fechado, 
Que vai, que vem, que vai, que vem, que vai...
Cadê o operário que estava aqui? 
A máquina comeu.

E o patrão que eu não vi?
Saiu de Cadillac, 
Foi a boate e não deve ser amolado.
Alô, o que houve? A máquina comeu 
o operário que estava na liga.
O operário tem seguro de vida?
Eu sei, eu sei, eu sei...
Ninguém chorou, eu chorei.


Morreu a macaca! Catarina morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!

Sabe quem morreu também?
A Amélia... açougueira...
Vendia a carne que Deus lhe deu!
Doença de rua!
Inveja a Amélia tinha da cachorrinha da D. Dedé,
Perfumada, comendo bolo, lambendo café!
A Fifi, quando morreu,
Cadelinha de estimação que era, teve até túmulo
no cemitério do Ibirapuera!
Amélia nada. Morreu ali na enxurrada!
A Fifi teve uma cruz quase Calvário.
Um anjo de asa!
A Amélia? Cova rasa!
Entendeu?
Ninguém chorou?
Chorei eu!

Morreu a macaca! Catarina morreu.
Todo mundo chorou... Menos eu!

O mendigo morreu de fome e de frio, 
O mendigo vivia a esmo, 
O único próximo de si mesmo, 
Seu cobertor de duas orelhas era uma cadela de rua
O mendigo morreu de fome e de frio, 
O cobertor estava no cio.
Quando o despertador de pardais 
tocou bem cedo para acordá-lo
Lá no Rio de Janeiro, o mendigo não acordou mais.

A Macaca Catarina cataplasma veterinária 
No braço e na perna, no rabo!
Burguesia vá pro Diabo!



*A macaca Catarina foi o animal mais querido do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro nos anos 40 e 50. Quando ela adoeceu, boletins informavam pelo rádio e jornais a evolução da doença, prognósticos e tratamento até a sua morte. A morte da macaca Catarina foi motivo de grande comoção nacional.







9 de março de 2013

Em branco.




"O toque do nada tudo esvazia..."
A História Sem Fim, Michael Ende.



Decifrar as pessoas era apenas uma habilidade vital que adquirira, advinda de sua quase insana vontade de viver um grande amor.
Via a todos como equações matemáticas simples, essas de primeiro grau, onde o positivo se torna negativo depois do sinal, onde as confusões são controladas com apenas uma rápida olhadela, com destreza ele as somava, subtraia e dividia, enquanto isso elas (as pessoas de sua vida) multiplicavam-se sozinhas em sua realidade.
Por essa vontade de ao menos entender algumas delas, precipitava-se na paixão e algumas vezes no amor, ambos breves demais sem muitos sinais a serem conjugados.
O homem grisalho foi breve também, breve demais.
Homem é uma palavra um tanto exagerada, era apenas um menino, um garoto grisalho, partilhavam da mesma idade, da mesma safra, a única diferença entre ambos eram os cabelos grisalhos do outro.
Um tipo de maturidade física prematura talvez, não sabia explicar ao certo mas o outro era completamente grisalho e isso o atraía, lhe dava uma espécie de segurança edípica nada doentia.
Sentia-se desde sempre estranhamente atraído pela humanidade das pessoas, esta humanidade era sempre representada por algum atributo físico que as distanciavam do padrão industrial de beleza, pintas, pelos, cicatrizes, altura demais ou de menos, peso demais ou de menos, covas, até mesmo a precária habilidade de enxergar enaltecida por um óculos de grau lhe despertavam o interesse em qualquer indivíduo, qualquer coisa que o tornasse mais acessível/aceitável a seu padrão de humanidade também.
O homem grisalho conseguia preencher a todas as suas expectativas com os espaços em branco percorrendo todo o seu corpo, pelos, barba, cabelos, o grisalho era um grande hiato onde ele sonhava em se estabelecer, pelo momento em que este hiato perdurasse.
Mas durou pouco como já mencionei, acontece que em apenas alguns dias depois do grisalho ter-se ido, olhando-se no espelho, percebeu um fio de barba branca em seu rosto, próximo a boca.
Não havia notado antes e nem esperava por isso na juventude que degustava ainda aos poucos, seu primeiro fio branco, seu atestado de envelhecimento, de envolvimento.
O grisalho partira e lhe deixara isso, um espaço em branco perto de seus lábios.
Talvez este fio já existisse bem antes do grisalho e pelo negrume dos outros fios acabou sendo confundido com um brilho, apenas um relance na luz.
Retirou-o com os dedos, uma leve beliscada, uma dor tão breve quanto tudo que já havia se encaminhado, "nascerão três no lugar deste" teria lhe dito sua mãe, segundo ela, em breve ele inteiro estaria coberto por estes espaços em branco também, num efeito acumulativo infinito, logo ficaria devendo espaços em branco ao universo que lhe cercava.
"Arrancarei todos" disse a si mesmo deixando o transparente fio cair sobre a enxurrada da pia.
Não mais de uma semana, la estava, não três mas o mesmo, no mesmo lugar, o fio branco perto dos lábios...
Defronte ao espelho naquele momento, decifrou a si mesmo. 
O vazio deixado pelo grisalho, que tão carinhosamente apelidara de espaço em branco, não poderia ser extinto, apenas preenchido.
Eis a questão: com o que?