"A macaca Catarina"
Décio Bittencourt
Trabalhou na enxada a vida inteira
Sem médico, sem padre, sem escola,
No final de uma existência de canseira
A recompensa foi pedir esmola.
De tanto ficar vazia pedindo, pedindo,
Pedindo, pedindo, pedindo,
Surtou o surto da revolução
E veio a lei, ora a lei,
Ninguém chorou, eu chorei.
Morreu a macaca! Catarina* morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!
O tuberculoso que escreve cuspindo
Um poema vermelho na página fria
Do cimento da calçada,
Tem duas mãos fechadas la dentro do peito,
Lei sem dinheiro não é lei.
No cubículo o tuberculoso aguarda a
Hemofilia fatal.
Não há vagas, não há vagas, não há vagas
Não há vagas, não há leito, não há leito,
E ele tem as duas mãos fechadas lá dentro do peito.
Lei sem dinheiro não é lei,
Ninguém chorou, eu chorei.
Morreu a macaca! Catarina morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!
O operário, a máquina comeu inteirinho
O operário virou picadinho sepulto no ferro
O pistão da máquina parece um punho fechado,
Que vai, que vem, que vai, que vem, que vai...
Cadê o operário que estava aqui?
A máquina comeu.
E o patrão que eu não vi?
Saiu de Cadillac,
Foi a boate e não deve ser amolado.
Alô, o que houve? A máquina comeu
o operário que estava na liga.
O operário tem seguro de vida?
Eu sei, eu sei, eu sei...
Ninguém chorou, eu chorei.
Morreu a macaca! Catarina morreu
Todo mundo chorou... Menos eu!
Sabe quem morreu também?
A Amélia... açougueira...
Vendia a carne que Deus lhe deu!
Doença de rua!
Inveja a Amélia tinha da cachorrinha da D. Dedé,
Perfumada, comendo bolo, lambendo café!
A Fifi, quando morreu,
Cadelinha de estimação que era, teve até túmulo
no cemitério do Ibirapuera!
Amélia nada. Morreu ali na enxurrada!
A Fifi teve uma cruz quase Calvário.
Um anjo de asa!
A Amélia? Cova rasa!
Entendeu?
Ninguém chorou?
Chorei eu!
Morreu a macaca! Catarina morreu.
Todo mundo chorou... Menos eu!
O mendigo morreu de fome e de frio,
O mendigo vivia a esmo,
O único próximo de si mesmo,
Seu cobertor de duas orelhas era uma cadela de rua
O mendigo morreu de fome e de frio,
O cobertor estava no cio.
Quando o despertador de pardais
tocou bem cedo para acordá-lo
Lá no Rio de Janeiro, o mendigo não acordou mais.
A Macaca Catarina cataplasma veterinária
No braço e na perna, no rabo!
Burguesia vá pro Diabo!
*A macaca Catarina foi o animal mais querido do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro nos anos 40 e 50. Quando ela adoeceu, boletins informavam pelo rádio e jornais a evolução da doença, prognósticos e tratamento até a sua morte. A morte da macaca Catarina foi motivo de grande comoção nacional.