16 de outubro de 2012

Sobre os fins, os meios e os começos.




"Gostava de morar na tua pele
desintegrar-me em ti e reintegrar-me
não este exílio escrito no papel
por não poder ser carne em tua carne.

Gostava de fazer o que tu queres
ser alma em tua alma em um só corpo
não o perto e o distante entre dois seres
não este haver sempre um e sempre o outro.

Um corpo noutro corpo e ao fim nenhum
tu és eu e eu sou tu e ambos ninguém
seremos sempre dois sendo só um.

Por isso esta ferida que faz bem
este prazer que dói como outro algum
e este estar-se tão dentro e sempre aquém."

Sete Sonetos e um Quarto – Manuel Alegre, 2005.



O mais estranho de escrever sobre o fim é começar a escrever sobre o fim, ainda mais depois de um certo tempo desde que o fim se estabeleceu. Escrever sobre o fim se torna quase um ato de recomeço, também não deixa de ser um novo começo, ou mesmo uma continuação do que ficou em branco, em silêncio, tudo depois do (inevitável?) fim.
Se os fins justificam os meios, os meios justificam o começo. Antes do meu fim o meio estava até que agradável, vindo de um começo brilhante, com doses cavalares de destino, maturidade, sinceridade, leões imaginários sendo mortos um de cada vez. Então o fim. Abrupto, até mesmo a frase que começou o meu fim é finita “Não existe maneira fácil de fazer isso.”, por mais brincadeiras e trejeitos que o finalizador evocou no momento, o fim é um fim e não mais um meio, muito menos um começo.
A expressão facial (literalmente) que mais se encaixa no meu fim seria o "Ecce Homo" do Elías García Martínez (que fica no santuário espanhol de Nossa Senhora da Misericórdia de Borja, Zaragoza, Espanha) e que recentemente foi magistralmente ~n~ restaurado pela querida senhorinha Cecilia Giméne. 
O fim agora visto como um recomeço pode também ser encarado como uma restauração, ainda que mal feita e precária, muda a imagem original que no caso era a serenidade do meio, deixando em seu lugar o rosto pasmo e disforme da perplexidade de um fim .
O som do fim não é uma explosão por mais surpresa que ele cause, o fim é o silêncio, a ausência, o abismo.
Seres humanos que somos temos quase que uma vocação biológica para preencher o vazio todo o tempo, e como lidar com o final que nos impõe o vazio, se não o preenchendo?
E nós o preenchemos com o que temos a mão: dúvida, raiva, vingança, compreensão, perdão... Mas acima de tudo nos preenchemos com a análise. Sim, porque basta um fim para que todos os fins voltem a pauta e nos façam questionar onde foi que os meios tornaram-se fins. Vasculhamos com os olhos duvidosos da memória todos os fins, procuramos sintomas, presságios, sinais em plantações, posições estelares, qualquer Nostradamus que pudesse ter nos avisado antes e assim nos preparado. Mas nenhum meio consegue nos preparar para o fim, por mais evidente que este possa ser.
Depois da análise vem a anarquia. Não lidamos muito bem com o imutável que nos mudou completamente, deixamos de ser algo que jamais seremos novamente e passamos a ser outra coisa, ainda nova, indefinida e desconhecida. A fase da anarquia é quase toda preenchida de inconformidade. Odiamos, destruímos, jogamos fora fotos, presentes, futuros não existentes, não suportamos muito, quebramos os templos, destronamos os reis e queimamos os ídolos que antes eram adorados em nossa, agora antiga, realidade.
Culpamos o finalizador, culpamos os deuses, o destino, a nós mesmos. 
Nos enchemos de raiva, de músicas, de poemas, de traduções de uma dor tão intima que como a ferroada de uma abelha, persiste, pulsa. Tudo o que o finalizador fizer, qualquer movimento numa tentativa de se aproximar ou de se afastar, ou mesmo de se recomeçar sozinho em sua nova realidade, machucará, muito. Visto que não sabemos o que nos tornamos depois do fim, como imaginar ou lidar com o que quem nos finalizou é agora? Remédio? Distância: deixa o silêncio do fim ecoar livremente, sem tanta dor, sem reverberação.
Depois de nos preenchermos com tudo ao nosso alcance, escaparmos do ferrão do contato com o finalizador, deixarmos a distância ecoar o silêncio do fim, enfim, nos enchemos.
E começa então o processo inverso, o esvaziamento.
Nos esvaziamos da culpa, própria e alheia, nos esvaziamos dos poemas, das sensações, das montanhas russas, da indefinição, esse esvaziamento é o expirar da dor, toda a dor da inspiração da nova realidade é agora expurgada numa lufada só.
Então voltamos ao vazio, ao silêncio, mas é o vazio aveludado, o silêncio harmonioso, nada mais soa como um fim, tudo é um recomeço, tudo pede para ser reordenado, somos uma prateleira vazia pedindo por novos livros com novas histórias, novos enfeites adquiridos em novas viagens, novos porta retratos, recheados de novos contatos, tudo em nós pede o novo, e é isso que permite que recomecemos, que possamos falar sobre o fim como estou fazendo agora sem se deixar esbarrar em nenhum final, como um rio mágico que só desemboca em novos começos, um rio que contorna pedras e se levanta de quedas... E quanto ao finalizador, este é esvaziado também, já não é sequer o finalizador, foi esvaziado de todos os adjetivos, os bons e os maus, não o odiamos, nem tão pouco o amamos, não o agradecemos, não o perdoamos, não o culpamos e já não clamamos por uma vingança sobre este ser também agora, recomeçado. Não existe mais perdão, não existe mais vingança, o esquecimento é nosso único perdão, o esquecimento é a nossa única vingança. 


"E por fim se esqueceram sem dor…"
O Amor nos Tempos do Cólera, Gabriel Garcia Marquez.






Epílogo:
O coração volta a bater noventa vezes por segundo, 
a princípio por si, por outro só mais pra frente, quem sabe? 
Então o tempo torna-se nosso  sol, nosso marte e nos guia, 
e num belo dia transforma isso tudo em nada. 
O nada tudo esvazia.