"Há cordas no coração que
melhor seria não fazê-las vibrar."
Charles
Dickens
Minha função mais intrínseca, primordial, quiçá fisiológica
é fazê-lo viver, a ti e ao teu corpo, por isso venho pronunciar-me quanto a tua
vida. O meu apelo é o mais despretensioso possível, não tenho tempo de
discursar sobre minhas idéias e opiniões a respeito da vida que conheço e da
que desconheço, dentro e fora de sua caixa torácica o mundo segue um grande mistério para mim, mas mesmo em minha cega e desconhecida ignorância
gostaria de dizer uma ou duas palavras sobre os últimos acontecimentos.
Percebi-me acelerando naquela noite, não enxergo mas
soube quase que instantaneamente que seus olhos percorriam as palavras dele novamente. As mesmas palavras de novo, ainda não faziam sentido em seu córtex central, mas
assustavam ao serem vistas como um todo, um tipo de gestalt que ainda não
conheço, acelerei, descompassei, me preocupei com você, com o que lia, com o
término anunciado de algo que ainda não tinha certeza se de fato começara, ao
menos havia começado para você aqui dentro e todos nós (eu e alguns poucos órgãos) estávamos
cientes disso.
O que gerou o meu descompasso não foi de fato o que você
sentiu ou pensou sentir naquela noite, foi a repetição, ninguém entende melhor
de repetição do que eu, que desde antes de fazê-lo ser, sou.
A repetição me assustou, visto a importância que dava
para isso há um ano e a que voltou a dar algumas noites atrás, a repetição da infinita
equação amar e não amar, ter e não ter, estar e não estar mais. Essa corda
bamba, essa prancha de navio pirata que sempre lhe atira ao vazio e que você chamava de
pseudo-namorado, antes e agora. Não era e nem nunca foi, não possuo faculdades
desconhecidas como o cérebro, não prevejo o futuro mas sei que nunca viria a
ser.
E então veio a anunciada e inevitável separação, não
apenas física, mas emocional, separar os seus sentimentos dos dele, os seus erros
e precipitações dos dele, somar, subtrair e então dividir.
E lá estávamos nós dois, você dividido, eu quase enfartando,
o cérebro sobrecarregado, o corpo sem ar, os pulmões sorvendo nicotina
descontroladamente, tornando ainda mais difícil meu trabalho que já não é nem um
pouco fácil.
Então, devido a gravidade exacerbada da situação, fizemos
um motim, sua consciência talvez esteja estranhando algumas atitudes recentes
suas, mas tudo foi meticulosamente planejado por nós, seus vitais. Tudo entrou
no automático, no natural, pra facilitar sua vida (e a nossa), para abrandar a
sua dor.
Os hormônios mais violentos, alguns deles até grandes
culpados desta sua (des) ilusão, foram silenciados, quase todos por mim mesmo. O
cérebro parece que já entrou em acordo com todos os nervos que a incompetência
vem da parte dele, digo, do cérebro do outro e não do seu, e uma vez tendo
encarado esta realidade já desconectou ou ao menos começou a desconectar pelo
que soube, qualquer lembrança dele de você, em breve você não o chamara de mais nada, não teremos mais nomes para ele. Nem um unico sentimento
que se encaixe nele. Seus músculos faciais
concordam que a partir de agora não haverá mais sorrisos para ele. As lágrimas
serão contidas antes do orbe ocular, não se incomodarão em subir até os canais,
muito menos em descer por eles, o choro será reprimido pela garganta, e as
cordas vocais decidiram entrar em greve em tudo que se relacionar a ele, a
única coisa que ele ouvirá de você será o som do seu abismo, o som da sua imcapacidade de continuar.
Enfim, acredito realmente que tudo isso dará certo de
alguma forma no final, o meu passo não marca o tempo, não o transmuta ou
controla, mas podemos mudar (e mudaremos a partir de agora) a forma como você passa
por ele, e o tempo que se vire, como nós aqui dentro estamos nos virando
também.
Escolhi este momento de repouso em que sua consciência esta
silenciada pelo sono, pela brisa noturna, para expor a você o que estamos
fazendo e o por que de estarmos fazendo, precisamos de você bem vivo, lúcido,
existem células nascendo aqui que querem sua chance de ver o mundo, mesmo que
seja apenas esse seu mundo (tao vasto e pleno para nós) interno.
Quanto a ele, não o conheço, sei que não deve ser de todo
mal, sei que você sabe disso também, não o estamos tratando como uma chaga ou
uma enfermidade que precisa ser curada, seu sistema imunológico nem entrou
nessa jogada, mas acredito que dentro dele tudo tenha sido alinhado
premeditadamente para o "até nunca mais", e como nós, desligados que somos, esquecemos de fazer isso por você antes o fazemos agora.
Em breve seu sono acabará e eu preciso voltar ao meu
trabalho antes que você enfarte, mas não tenha medo de sonhar de novo, é bom
para você e para todos nós quando o faz, apenas lembre-se, ja diria o poeta que você sonha
quando olha para fora, mas só acorda quando olha para dentro, ou no meu (e no seu) caso, quando o lado de dentro acorda para o de fora.
Atenciosamente.
Seu coração (lat. cor, grc. Καρδία).