1 de julho de 2012

A crônica do amor malfadado.





“O burro o rei e eu estaremos mortos amanhã.
O burro de fome, o rei de tédio, 
eu de amor.”

Jacques Prévert


Um botão apertado, uma chamada transferida, um ramal acertado, o simples e corriqueiro ato de atender a uma ligação e soube que ele havia morrido ontem. Consegui ainda terminar a conversação necessária com a pessoa do outro lado da linha, que por algum tipo de dever moral, achou que deveria comunicar-me o ocorrido, este era um antigo amigo, de quando eu e ele, o agora falecido, ainda éramos um casal.  
Como o som pode ser perturbador, qualquer som, quando é necessário ascender a um estado de silencio absoluto e contemplativo, dizer um “obrigado por ter me avisado” é um trabalho de Hércules. Então finalmente, o silêncio... Não um silêncio qualquer, mas o silêncio predecessor, onde é possível ouvir o quase inaudível som das emoções mais profundas, escavando, subindo e brotando, dantes enterradas, agora rastejam contaminando veias, contidas na garganta, sobem aos canais lacrimais por onde deságuam no orbe ocular, e ao fechá-lo num esforço racional e consciente de negação, podemos apenas contemplar mais facilmente aquilo que é visível somente dentro de nós, o passado. 
Chorei pouco, evitei procurar motivos para chorar, se quisesse e quando quisesse, os encontraria, sabia onde estavam. Ele havia sofrido um acidente, seu corpo já estava sem vida quando foi resgatado e estaria ainda sobre a terra até o dia de amanhã, quando seria o funeral.  Não cheguei a pensar se deveria ir, simplesmente fui. 
De uma forma mecânica como na época em que estávamos juntos, olhei os horários de ônibus no guichê da rodoviária, porém ao comprar a passagem não podia mais esperar pelo inesperado, pela surpresa de faltar ao trabalho na segunda feira para passar mais tempo ao lado dele, ou então ajudá-lo a pegar o carro do pai escondido para trazer-me de volta, parando sempre nos acostamentos da rodovia onde rotacionávamos a energia fluida de nossos corpos jovens, em beijos, em sexo, em falta de pudores e preocupação.  
Pela primeira vez, comprei também a passagem de volta e ao receber ambos os bilhetes, senti uma dor estranha, incomum, como se estivesse prestes a ruir, minha estrutura, todo o meu interior estava danificado. 
O cheiro do ônibus, o desconforto reconfortante da viagem que nunca era tão longa, ao menos não tão longa quanto esta, as paisagens que se repetiam à janela, a vida que se repetia na pequena cidade do interior, lojas abertas, pessoas nas ruas, exceto ele, lá tudo remanescia.
Ele não havia se casado ou sido feliz, mas isso não era nada, nem eu que ainda respirava poderia estar cem por cento seguro de que era feliz, mas certamente um dia fora, talvez até ao lado dele. 
Eu já havia desejado cada centímetro quadrado dele, sorvi todas as noites o que ele me oferecia, as conversas, os licores, os líquidos, vivi intoxicado por ele muitos anos depois do término ainda. Mas ele provavelmente não, eu pensava, agora jamais teria a certeza se sim ou não. Ele não mais existia. 
Viveu fugindo de si mesmo, repetindo velhos erros, preso a vícios, ao medo de crescer, àquela maldita cidade, fugiu ao menor imprevisto do destino, ao primeiro obstáculo, ele apenas decidiu se livrar um dia de tudo aquilo que amava, e na ocasião, eu fui uma das “coisas” escolhidas. Eu sofri, ele, quem sabe.
Sorrio ainda ao lembrar das noites em que chorei por ele, pela ausência dele, pelo excesso de sua ausência, pela escassez de sua presença.  Mas com o tempo a dor foi diminuindo, um processo estranho e até então desconhecido para mim, o processo de enterrar, sim porque quem acha que corações partidos são soldados novamente no esquecimento, nunca sentiu o prazer de um coração fundido nas lembranças. Eu o guardei. Aos poucos e sem perceber, sem a intenção, deixei todas as lembranças, os toques, os hálitos, a presença e a ausência guardados em um relicário, e como um álbum de fotos antigo o resgatava de vez em nunca, principalmente quando queria chorar ou sorrir, sim, ainda doía, mas era uma dor mais conformada, não mais a perda do grande amor de uma vida que ainda estava começando, mas sim a perda de um homem que eu amava odiar, um homem capaz de extrair de mim toda sorte de emoções possíveis. Até então julgava tudo isso perdido, mas lá dentro do relicário, ainda estava guardado junto à ele a esperança de um possível futuro.
E naquele momento a esperança que restava de ver o rosto dele ao olhar para mim agora, tantos anos depois, um homem pleno, se rasgou. Senti então a mesma dor que sentira no guichê da estação rodoviária, uma fratura interna, tangível, quase pude ouvir o som de algo se quebrando dentro de minha caixa torácica, a realidade enfim havia me golpeado, se estabelecido. 
Não a realidade de que agora ele estava morto mas sim de que agora eu estava vivo.