26 de julho de 2011

A árvore.

A Árvore Vermelha - Piet Mondrian

“Um lugar bravio, santo e encantado,
Como nenhum sob a pálida lua visitado
Por mulher em prantos ou pelo demônio amado.”

Rudyard Kipling


Fortuna saiu de casa cedo, suas malas já estavam prontas, o carro previamente abastecido e revisado, a antecedência lhe acompanhava. Não conhecia o caminho, mas soube que grande parte da estrada ficava emparelhada a uma velha ferrovia que não era mais usada, podendo assim se situar, o dia estava nublado com a temperatura amena, sentia que seria uma viagem tranquila, sem imprevistos.

Tinha certa noção de onde queria chegar, por isso não se preocupou com os meandros do caminho, estava indo em direção a um cliente, em uma cidade do interior, este promovia anualmente uma festa folclórica na cidadezinha e ela era a organizadora do evento, passaria dois dias hospedada em um hotel, acompanhando os festejos.

Tudo foi antecipadamente marcado, sua antecedência era uma qualidade adquirida com o tempo, o seu maior diferencial no mundo dos eventos, cheios de imprevistos, era que, com ela, isso jamais acontecia.

Manteve a velocidade limite facilmente, sem músicas para lhe distrair os sentidos da bela paisagem que, aos poucos, o horizonte lhe permitia ver, relaxada como estava, pensou em coisas do passado, no amor, na faculdade, quando ainda virgem se apaixonou por um moço em especial, um que lhe interessava, bonito, com um aspecto serio, sem sorrisos, seguro de si.

Entregou-lhe sua virgindade, e, como imaginava, ele cuidou bem dela. Despiu-lhe cuidadosamente, a fez tremer de prazer, mas não muito, e então foi embora, como ela já esperava. Sempre imaginava com antecedência quando uma relação começaria ou terminaria e nem sequer se dava ao trabalho de terminá-la, sabia quando o companheiro tomaria a atitude final.

E há dois anos ou mais, não havia companheiro, apenas o final, que desta vez, se prolongou mais do que ela esperava. Estava sozinha, ela e a sua antecedência, prevendo-lhe os próximos passos.

O dia começava a ficar mais abafado pela chuva que se formava, abriu as janelas do carro, deixou um braço apoiado na porta sentindo o vento empurrando sua manga, colocou os óculos escuros e dirigiu mais alguns metros, até que num cruzamento da antiga ferrovia, que vez ou outra aparecia serpenteando paralelamente a estrada, estava um estacionamento de concreto no meio do nada, com uma cerca de segurança para evitar que as pessoas despencassem no pequeno barranco adiante, ali havia o carro de uma família, decidiu parar para fumar um cigarro.

Desceu do carro, e educadamente cumprimentou o casal que tinha uma filha de aparentemente nove anos, sentia-se desconfortável fumando na presença de crianças, por isso depois de um rápido aceno com a cabeça, se afastou para sentar-se na pequena cerca. A mulher da família, uma moça jovem e animada veio falar com ela, lhe disse animadamente que entrando um pouco na mata que ficava alem da cerca, descendo o barranco, depois de cinquenta metros ficava uma árvore linda, que valia a paisagem inteira, inclusive a parada ali, disse que antigamente, aquela ferrovia era muito utilizada no interior do estado e as moças e rapazes das cidades da redondeza, amarravam fitas com o nome dos viajantes nos galhos da árvore, para que estes se apaixonassem e sempre retornassem.

Fortuna achou uma história bonita, mas com o passar dos anos, havia perdido grande parte de sua sensibilidade romântica, a história a tocava, mas apenas superficialmente.

 Muito tempo depois que o cigarro havia acabado e o casal havia partido, Fortuna ainda estava sentada lá, pensando coisas sobre seus dois dias na cidade desconhecida, e sobre o seu cliente, um homem que conhecia apenas pela voz, nos inúmeros telefonemas noturnos que lhe fazia, uma voz masculina qualquer, mas com um tom educado e polido, um vocabulário tão bem elaborado, que por vezes, se via imaginando como deveria ser o dono daquela laringe masculina que vibrava com tamanha destreza.

O lugar onde estava agora ficava a menos de meia hora da cidade em que ocorreria a festa e Fortuna estava antecipada, pensou que seria interessante ver a tal árvore e fotografar com seu celular para enviar as suas amigas, que ainda não haviam perdido completamente aquela delicada veia romântica.

 Ultrapassou o limite de segurança, e desceu o barranco que tinha menos de dois metros e uma inclinação agradável de grama verde, mesmo de salto não teve dificuldade em chegar ao vale que ficava abaixo, e, depois de alguns passos, pode ver a árvore.

Parecia um salgueiro muito antigo, o tronco grosso e alto, a copa completamente seca com galhos negros retorcidos, porém, mesmo com o tempo nublado, a árvore ainda parecia simpática, e de fato, era uma visão fenomenal, quase todos os seus galhos estavam atados com fitas coloridas.

O vento as balançavam e a árvore parecia viva, brilhante, como se estivesse no auge da florescência. Fortuna percebeu que algumas fitas eram visivelmente antigas, desbotadas completamente pelo sol, pela chuva, pelo tempo, nas fitas estava escrito de maneira vertical o nome de inúmeros desconhecidos, lembrou-se que eram os nomes dos viajantes que deixaram alguém apaixonado para trás, e esta paixão, era concentrada naquelas fitas que depois de atadas aos galhos do Salgueiro, funcionavam como um farol, mostrando sempre a direção em que o viajante deveria regressar, a direção em que o amor o esperava.

Não tirou fotos, apenas admirou a beleza daquela árvore atada com fitas coloridas no meio do nada, sentia-se feliz por estar ali, e por estar como sempre, adiantada.

Uma das fitas era visivelmente mais nova, de seda vermelha, brilhante, como se tivesse sido colocada lá recentemente, Fortuna pensou no tipo de pessoa que mesmo hoje em dia, se permitia um costume tão antigo e belo.

Aproximou-se, tocou as fitas lendo os nomes nelas, todos escritos de forma vertical e repetidos três vezes, nomes completos, deixou-se imaginar como seriam aqueles desconhecidos, como conseguiram cativar alguém, a ponto de merecerem ter seus nomes ali, imortalizados. Segurou nas mãos a fita vermelha, a mais nova, e leu o nome que estava escrito nela com uma letra firme e masculina, verticalmente, em preto e com a mesma repetição: Fortuna Alonso de Medeiros

O seu próprio.

A antecedência, a certeza do que viria a seguir, que esteve sempre presente, naquele momento, lhe abandonou.



Eu, sozinho.


"Eu ando sozinha
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha."


Cecília Meireles


Todos sentem a solidão, a ausência de algo diferente de si ao redor, a minha é apenas um pouco mais acentuada, uma solidão preenchida, um excesso de mim mesmo.
Sobrevivi a minha companhia e me tolero com grande habilidade, em dias bons, pontuados de delírios de satisfação, chego a amar-me, é um amor arranhão, bem de leve, para então novamente, o constante desconforto. Olho-me, sorrio sem jeito, como se eu mesmo pedisse "com licença" e sentasse eu meu próprio lado no ônibus, para logo em seguida, me ignorar.
O que me deixa mais sozinho, é a estranha sensação de estar o tempo todo na companhia da única pessoa capaz de mudar a sorte da minha felicidade ou infelicidade, eu.
Gosto de me ocupar na minha solidão, como quem arruma uma prateleira, nestas ocasiões raras onde o impulso inicial é ordenar as coisas, nossa atenção acaba sempre se desviando para lembranças, livros, objetos ali esquecidos há tanto tempo... Já eu, costumo me desviar para uma vida que não seja a minha, e me ocupo dela, gosto disso, de colocá-la em ordem ou de desorganizá-la de vez, e então volto sozinho, sempre.
 
Se não acho caminhos, me perco sozinho,  se refaço o caminho, caminho sozinho.