27 de junho de 2011

Laços



[...]
Amei-te muito, muito!Tão risonho
Aquele dia foi, aquela tarde!…
E morreu como morre todo o sonho
Deixando atrás de si só a saudade! …

E na taça do amor, a ambrosia
Da quimera bebi aquele dia
A tragos bons, profundos, a cantar…

O meu sonho morreu… Que desgraçada!
………………………………
E como o rei de Thule da balada
Deitei também a minha taça ao mar …

Florbela Espanca, "Balada" 08/08/1916


Na prateleira estava o presente, amorrotado com a pressa que o dia em que o embrulhou exigia, o laço de fita cruzando o cubo por todos os lados, jazia empoeirado, não entregado e jamais esquecido. Era uma mácula, uma chaga aberta que o afrontava todos os dias, muito antes dos raios solares, lá estava ele, o presente. 
Prometia diariamente que o abriria, desfaria todos os laços, o daria a outra pessoa, ou se lhe servisse o tomaria para si, porém perdera a habilidade de se enganar com tais promessas, sabia que não o entregaria a ninguém, sabia que não se desfaria dele, nada dentro daquela caixa lhe pertencia, pertencia a outro.
O presente a princípio era apenas uma surpresa, adquirida em segredo e com todo o cuidado, dentro dele havia pequenos pedaços do outro, seus gostos alí dentro estavam misturados, era uma prova de afeição, de abertura, o presente era sua maneira desarticulada de dizer que o outro havia sido percebido, visto em cada mínimo detalhe, explorado e apreciado, lhe tiraria sorrisos e agrados, surgiria inesperado, no meio da festa, escrito numa mensagem invisível, com palavras mudas, inaudíveis aos ouvidos mundanos, gritando silenciosamente a mensagem de que o dia em que o outro veio ao mundo deveria ser comemorado, porque ele o conhecera.
Mas o presente nunca chegou as mãos do outro.
Desviou-se no caminho.
O destino havia lhe prometido tudo, mas no final, não lhe entregara nada.
Perdera-se do outro, não sabia exatamente quando, nem que caminho havia trilhado que o outro não lhe seguiu, ou se seguiu não se fez notar. Eram completamente diferentes, e isso nunca o assustou, o presente era uma conexão, uma caixinha cheia de similaridades para lembrar ao outro que no fundo eram um pouco iguais. Houvera um tempo em que eram ligados, não uma ligação simples e direta, mas um embaraço, eram embaraçados um no outro, tropeçando a cada passo, mas não se importavam, um jeito certo de se amarem errado. 
O presente então, nessa época se tornou um laço, unindo-os. Era um símbolo de expectativa, de ansiedade e esperança, era a promessa que se veriam, ele para entregá-lo, o outro para recebe-lo e nada mais.
E então agora o presente não era nada, era um órfão.
Olhou o presente e sorriu, triste, percebendo que dividiam a mesma sorte. O outro jamais abriria o presente, jamais desfaria o laço e libertaria a caixa de seu embrulho, colhendo as similaridades delicadas que nela haviam, jamais perceberia a mensagem oculta de que fora visto. O outro jamais lhe veria como um presente também, recheado com algumas similaridades doces e diferenças abismais, coberto com tatuagens e espaços em branco, com seu jeito tímido e desajeitado de encarar as coisas, de encarar o outro, com seu medo de se perder e não saber voltar, não.
O presente agora tinha um gosto de passado, amargo e nostalgico.
O presente estava na prateleira esquecido, mas ambos ainda estavam envolvidos pelo laço.



p.s. crônica de um presente ainda não entregue.


20 de junho de 2011

Alomorfia




Neste tormento inútil, neste empenho
De tornar em silêncio o que em mim canta,
Sobem-me roucos brados à garganta
Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma da charneca sacrossanta,
Irmã da alma rútila que eu tenho,
Dize para onde eu vou, donde é que venho
Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,
Cadências de soluços e de gritos,
Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?
Nódoa de sangue que palpita e alastra…
Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Florbela Espanca - A mensageira das violetas



Para ele a parte mais difícil sempre estava por vir, ou já tinha ficado para trás. Estava sempre tão distante que não podia tocar a vida, sequer podia enxergá-la. Preso entre algum medo superado do passado e um medo vindouro do futuro, duas cadeias, uma em cada punho. Aprendeu a não ter certezas quanto a sua existência, no seu caso em particular certeza era uma palavra quase estranha ao seu vocabulário, raramente a empregava.
Sua realidade estava situada sobre uma base feita de quimeras fantásticas, fantásticas porém míticas e nada mais. Sobre o mar onde se encontrava, podia ver claramente o horizonte que o oprimia por todos os lados, podia ver os astros e orbes acima de si, mas tal era a profundidade do mar, que não podia sonhar com a visão de um chão.
Flutuava.
Não tinha grande densidade, era poroso, vazio, escorria-lhe o ser por todos os buracos. Seu todo sonhava em ser completo, já sua casca sonhava apenas em ser um casulo, e sozinha ao redor dele aguardava todas estações girarem ansiando pela alomorfia de seu conteúdo, de seu interior, mas esta nunca chegou. Nunca se transformou, a casca era na verdade o ultimo resquício abandonado daquele outro homem que fora um dia e partiu sabe-se lá pra onde, sabe-se lá quando.
Era uma chaga de si mesmo, vivia uma penitência por um pecado que ainda cometeria, encontrava-se sempre dentro do desconhecido, tão banal era a sua vida, que não tinha sequer idéia do que lhe aconteceria, e  mesmo assim, ainda esperava que acontecesse...


p.s. este é meu único ser possível, por hora...